Uma das causas da grande melancolia da condição humana é saber que o suicídio também é justificável. Basta, para tanto, lembrarmos da cínica metáfora da cebola e suas relações com a ontologia. A vida, tal como este bulbo vegetal, é oca - constitutivamente. Paradoxo que lança uma tarefa interminável e fatigante, equiparável a de Sísifo, ao filósofo, este sujeito do descascar. Lembremos o étimo-jargão do exemplar de filósofo que, de forma manifestamente moralizante, não detém nenhum saber ou sabedoria, tampouco se apresenta como um sophos, mas apenas se aproxima da verdade através de uma relação de philia, relação que se basta nesta aproximação amorosa e sempre incompleta (já na sua simples existência enquanto pathos). Ora, saber que as categorias são folhas que podem levar a outras folhas - ininterruptamente e incansavelmente - até o estupor (e choro, no caso das cebolas) daquele que se lança às chamadas “perguntas fundamentais” - e não até ao encontro de uma paragem segura de descanso ou termo absoluto do fluxo do pensar -, não deixa de expor uma via (crucis) trágica, neurotizante e pesada que Nietzsche tentou combater com sua celebérrima desconfiança em relação ao que chamará de vontade de verdade (ao mesmo tempo uma vontade de impotência, uma vontade de nada... Para alguns ainda preferível frente ao nada de vontade, este que pode ser comparado ao pós-gozo de um contato visceral de peles, e não apenas com o clichê zen-budista muito ao agrado da ajuda-ajuda disseminada na filosofia acadêmica de plantão). Saber que não há um solo categorial unívoco (seja um significante primevo e necessário, sejam condições transcendentais ou a priori de possibilidade, seja o monótono monossílabo “Deus” do monoteísmo, seja um falo ou fala matricial, tutti quanti...) para ancorar o “ser” evidencia-se perturbador para “indivíduos” “fadados” à mais radical e absoluta das finitudes. Em outros termos, se não há um ancoradouro seguro para isto, o ser (nem o conceito de existência em Sartre ou nos fenomenólogos revelou abertura para tanto), estamos condenados, de forma definitiva e irrecorrível, à liberdade mais completa e profana, baseada tão somente no estar-no-mundo (ter nascido) e poder agir, começar algo novo, brincar com a fala, o falo e assim sucessivamente ou sem regras explícitas. Porém, o que revela o sem fundo e teto da grande e estúpida (não num sentido feio e grave para este termo, que também poderíamos traduzir por prosaica ou, a la Drummond, besta) cebola de nostra vita é o fato de que o nada, o oco, na cebola é, em similitude, o próprio nada que nos envolve e nos constitui, cebolas prenhes de nada e a ele destinadas. Para falar com clichês mais fortes: a vida, em termos cosmológicos, é um átimo. Um suspiro belo, aleatório, comovedor e dependente de canções fúnebres.
Começamos a digressão, contudo, falando do suicídio. Não cometeremos a gafe de citar Camus. O fato de saber que a vida é um sem fundo (não fundado e não fundamentável), por si só não é razão suficiente para o suicídio, salvo para os sedentos por verdades eternas e outros maníacos (mitômanos, em sua maior parte). O problema se desloca quando, em meio a esta vertigem nauseada do próprio “existir”, estabelecem-se os domínios dos imperativos e dos controles que buscam dar sentido à(s) vida(s), projetá-la(s) ou mantê-la(s) nos estritos códigos da sobrevivência, ou dos mais variados fetiches. Em outros termos, acabar com a contingência e a espontaneidade inerentes à vida besta e inoperosa. Não é à toa que os campos de concentração representaram um laboratório macabro para produzir o inferno da necessidade e do fundamento inescapável no mundo e aí - sim - colocar-se-ia, no plano factual, a questão de que o suicídio também pode ser justificado e pode representar um ato em si mesmo louvável e de não-conformismo. (A propósito, possui alguma “aura heróica” a sobrevida após o campo? Mesmo aquele que o testemunha já sabe que carrega em si uma má-fé atroz, uma vergonha, como apontou Giorgio Agamben, pelo simples fato de se saber sobrevivente na condição mais próxima do inumano que se possa imaginar, enquanto outros simplesmente naufragaram. Talvez o suicídio fosse a via mais coerente para não se deixar capturar pela máquina de morte, dispositivo que não propicia tão-somente a morte física ou a produção de cadáveres. As testemunhas dos Lager nazistas são aquelas que encararam a face do nada absoluto encarnado na técnica sádica de mortificação e que, logo após, com sua sobrevivência, depararam-se com as “muitas folhas para descascar” na sobrevida fora do campo, tendo de retornar, não raro, para as antigas e usuais profissões, com a exceção daqueles que optaram, por exemplo, pela atividade da escrita/memorialismo, tendo de atender, dentre inúmeros objetivos declarados ou inconscientes, a um mercado editorial específico, como Primo Levi).
Mas podemos evitar um argumento tão limítrofe. O dia-a-dia dos oprimidos na periferia das grandes cidades está baseado, de certa forma, na lei da necessidade travestida em “economia de mercado”, salários, dívidas, horários, etc. Uma alternativa factível e cínica, no sentido pejorativo do termo, para estas coletividades talvez seria o suicídio (que é politicamente e simbolicamente inócuo), o crime (que só respaldaria a totalidade parcial existente) ou a política, no sentido mais genuíno (e grego) da palavra, conceito que está muito distante do que se entende por “política” nos espaços institucionais atrelados ao aparato econômico-estatal. A política seria o encontro com as potências insondáveis, imprevisíveis e impredizíveis que estão no homem que age. Encontro com o tempo e com a vulnerabilidade não domesticada de saber-se homem, ser genérico, e pronto para mudar o rumo dos ventos do mundo. Mas não é à toa que o campo de concentração volta a ser um modelo para a análise da questão contemporânea. Lá era impossível a política (o suicídio é não-político por excelência, por isso uma saída limítrofe para uma situação de esvaziamento limítrofe da capacidade política humana de agir e começar, tal qual o campo de concentração), assim como, de maneira isomórfica porém com intensidades distantes, parece ser extremamente difícil uma política genuína em meio aos escombros do presente, a prótese de mundo existente entre consumidores isolados e amedrontados. Para os que não estão de má-fé e insistem em não sucumbir ao terror, restam o nada, a obscuridade do espaço doméstico-laborativo e... Uma navalha sempre à mão.
Porém, felizmente, ainda, o mundo dos escombros não pode ser objeto de um total controle: domínio pleno é o sonho tanatológico dos técnicos contemporâneos e pesadelo concreto a prenunciar a catástrofe ou o terror absoluto que se aproxima velozmente.
Notas de desespero: 1. os freios de emergência estão cada vez mais obsoletos e adormecidos.
2. Talvez a catástrofe já tenha tomado conta de tudo, inclusive de cada um de nós. Apenas ainda não pudemos percebê-la de nossas salas de homúnculos autômatos e solipsistas.
2 comentários:
Amigo,
esperava sua missiva com ansiedade!
quero logo deixar meus comentários sulfurosos...
Grande abraço!
V.
Rapaz!
é seu:
Suave e brutal!(rs)
Saudade, amigo!
Th.
Postar um comentário