terça-feira, 24 de abril de 2012

De cartas impossíveis


Para minha destinatária impossível.

Querida, já não me lembro mais quantas vezes lhe escrevi. Aliás, nem mesmo se cheguei alguma vez a efetivamente escrever. Acho que não escrevo, nem mesmo agora. Parece que esta carta foi por mim encontrada num outro tempo; parece que ela já tinha sido escrita por um outro alguém e que, agora, este agora, foi apenas o instante de encontro. Como quando buscamos algo nas gavetas mais obscuras, onde guardamos nossas coisas mais recônditas e, no entanto, acabamos encontrando algo que não mais reconhecemos como nosso, ainda que esteja lá, nas "nossas coisas". A carta que nunca chegou a ser enviada, o postal comprado e que fora usado como marca páginas ao invés de enviado, o presente que se tornou passado pois não tive tempo de entregá-lo... todas essas coisas intentadas, todas essas falhas de ação e que também se tornaram falhas de memória. E reabrindo a gaveta há tempos fechada foi que encontrei também esta carta. Uma carta intentada e que agora já não é mais a que estava guardada, pois, como haveria de escrever sobre a abertura da gaveta, sobre os esquecimentos e lembranças se ainda não havia vivido essa experiência do reencontro que foi abrir a gaveta? Como poderia ter sido esta a carta de outrora se naquele outrora eu nada saberia lhe dizer sobre a experiência de ter reencontrado uma carta? No entanto, esta carta é sim aquela carta. E penso que talvez seja ela, como a memória do velho Murilo Mendes, "uma invenção do futuro muito mais que do passado". Descobri que esta carta que  envio agora, neste agora, estava já inventada desde quando fora escrita, não com estas letras, não neste formato, não com estes assuntos, não desta vez, mas, ao mesmo tempo, com todas estas letras, neste formato, com estes assuntos, porém, numa outra vez... E, atônito, querida, atônito, escrevo agora sabendo que o que escrevo não passa do que já estava escrito desde não sei quando e que permanecia ali, guardado, naquela gaveta em que agora não ouso mais mexer...

Do seu remetente impossível. 

p.s.: envio também o postal que estava junto à carta: o São Jerônimo do Dürer (sim, e agora penso que a vanitas sempre nos diz coisas sobre essas coisas do tempo) que de Lisboa deveria ter-lhe enviado.

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