Às vezes sorvemos nossos remorsos no primeiro gole de café pela manhã. Talvez, depois de ter lido essa frase, tenha ficado um pouco atônito, mas mais do que pensar a respeito dos re-sentimentos, das re-vivências das abstrações às quais damos o nome de culpa, foi a re-mordida (ah, não havia como deixar de pensar em italiano) o duro golpe dessa sentença. Remexer em coisas, sejam elas efetivamente coisas (se é que podemos falar assim de coisas) ou, ao contrário, nessas coisas que chamamos lembranças (se é que de lembranças fazemos coisas ou vice-versa), a mim sempre se dá como uma espécie de captura, de uma impreterível mordida numa isca. Na xícara de café matinal está sempre a oportunidade do esquecimento e do drible da isca. E deglutir o líquido quente e perfumado como culpado talvez seja isso... Não é questão de intenção, mas somente uma tensão: não a que se cria no fio mordido por nós, pequenos peixes tentando viver no mar da memória, mas a que se dá toda vez que a abstração culposa se afigura como único horizonte pós-ato. Post coitum animal triste. Os latinos não diziam nada da culpa em tal sentença (e porque comecei a usar esse horrendo significante para falar frase? Esse significante culposo por excelência?), mas falavam apenas da perda do passado, da dor da perda do momento de prazer para possuir o presente, para ser o presente. E, neste primeiro gole matutino, no primeiro golpe de luz do dia, escuto o velho Nietzsche a me dizer que "todo agir requer esquecimento: assim como a vida de tudo o que é orgânico requer não somente a luz, mas também escuro. Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante àquele que se forçasse a abster-se de dormir, ou ao animal que tivesse de sobreviver apenas da ruminação e ruminação sempre repetida. Portanto: é possível viver quase sem lembrança, e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mas é inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver."
Imagem: Hendrick Goltzius. Sem Ceres e Baco Vênus congelaria. 1599-1602. Philadelphia Museum of Art, Philadelphia.
2 comentários:
Tão intenso e vibrante...
Pura verdade...
Mas como vc mesmo disse, vem nosso velho e amado Nietzsche, e nos fala do "esquecer"... Necessário.
E iluminar esses pensamentos com outros, cheios de luz, outros que farão bem ao coração.
São desses últimos que talvez precisemos mais para conseguir respirar e viver o hoje.
Gratidão!
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