Por Giorgio Agamben e Yldune Lévy
Foi em fevereiro de 2011 que apareceu a primeira notícia sobre o assunto: “Por
muito tempo foi o segredo mais bem escondido do “caso de Tarnac”: um agente
britânico, infiltrado no seio dos movimentos alter-globalizadores e
ambientalistas europeus, exerceu um papel importante nessa investigação”
(L’Express). A novidade permaneceu por muito tempo sem sequência, órfã. Os
escândalos não importam, como qualquer outra mercadoria.
Seu
nascimento deve muito à conformação moral do país em que eclodem. “O caso Mark Kennedy”, na Inglaterra, nutriu os tabloides e os programas sensacionalistas
durante meses. O escândalo conduziu à dissolução da unidade “de elite” dos
serviços secretos para os quais Mark Kennedy trabalhava, ao desencadeamento de
uma série de investigações sobre os métodos de infiltração da polícia inglesa,
à demissão de um diretor, ao não-lugar de todos os procedimentos que
implicavam direta ou indiretamente Mark Kennedy e até mesmo à anulação de
julgamentos já ocorridos.
Mas
o fundo do escândalo era ético: dizia respeito à incompatibilidade do deboche e
do lucro com o ethos puritano inglês. É possível que alguém, exercendo seu
trabalho de oficial de informações, transe com dezenas de charmosas jovens
anarquistas? É permitido gastar mais de dois milhões de euros, durante sete
anos, para financiar noitadas em festas eletrônicas, bebedeiras, férias, relógios de
espião de sete mil euros de um James Bond com piercings e tatuagens da
anarquia, e tudo isso por um pouco de informação sobre as atividades de
ecologistas radicais, de antifascistas, de militantes antiglobalização? A
sensibilidade nacional respondia sem hesitação “não” para essas questões
supérfluas. Daí a amplitude e a duração do escândalo. Onde estamos, na
Alemanha, por conta de uma primeira preocupação com procedimentos e com o solo nacional,
parece que o caso Mark Kennedy trouxe mais a questão sobre a legalidade ou não
do uso de um agente estrangeiro no território alemão.
A
partir do caso de Tarnac é possível extrair diversas genealogias igualmente
escandalosas, e quase igualmente secretas, mas a mais significativa
politicamente é aquela que parte de Mark Kennedy: pois é ela que mais fala sobre os arcanos do nosso tempo. Mark Kennedy trabalhava oficialmente para a
National Public Order Intelligence Unit, um serviço de informações britânico
criado em 1999 com o intuito de combater o retorno da contestação ecologista e
antiglobalização no Reino-Unido.
A
implantação massiva de agentes infiltrados nesses movimentos reflete o
lançamento de uma nova doutrina policial que em inglês é chamada
“intelligence-led policing” e em francês, com a licença do uso apresentado por
Alain Bauer e Xavier Raufer, o “décèlement précoce” [em português, algo como
“policiamento por inteligência”]. É nos anos 2000 que o Reino Unido se empenha,
por meio de sua presidência da União europeia, em difundi-la e em fazer com que
seus parceiros europeus a adotem – e as autoridades britânicas assim
conseguiram, como elas se gabam publicamente: pois, com a doutrina, é um
conjunto de serviços, de técnicas e de informações que poderão ser trocadas e
vendidas aos parceiros em questão.
“Informações”
saídas da imaginação fértil de Mark Kennedy, por exemplo. A nova doutrina diz
isto: o engajamento político, uma vez ultrapassando o quadro inofensivo da
manifestação ou da interpelação dos “dirigentes”, sai do quadro democrático
para entrar no domínio criminal, no “pré-terrorismo”. Aqueles que são
suscetíveis de sair desse quadro são reprimidos de antemão. Mais do que
esperar que eles cometam um crime, como ocupar uma usina de carvão ou
interromper uma conferência europeia ou um G-8, é suficiente prendê-los já no
momento em que eles elaboram o projeto, com o risco de suscitarem eles mesmos o
projeto.
As
técnicas de vigilância humana, como a abundante tecnologia eletrônica, devem ser
suficientemente compreendidas, sofisticadas e partilhadas. E como essas
técnicas “preventivas” não são sequer minimamente compatíveis com a ordem
chamada democrática, é preciso que sejam organizadas à margem desta. Aliás, é o
que respondeu com toda franqueza o chefe do BKA alemão (equivalente local da Direção Central de Informações Interiores, DCRI [algo similar, no Brasil, seria
a ABIN]) quando uma comissão parlamentar de inquérito começa a
interrogá-lo sobre o caso Kennedy: “Contra os euro-anarquistas, contra aqueles
que se organizam de modo conspirativo e internacional, também nós devemos nos
organizar conspirativa e internacionalmente”. “É preciso agir como
partisan em todo lugar onde há partisans”, dizia Napoleão numa fórmula que Carl
Schmitt adorava citar.
Não
há dúvidas de que o começo das dificuldades para as pessoas de Tarnac vem de
informações, fabricadas por alguns e voluntariamente aumentadas por outros,
emanadas de Mark Kennedy: pois era preciso que ele justificasse seu salário,
seus empregadores e seus créditos. Redes secretas franco-britânicas teriam
assegurado sua transmissão discreta à DCRI, esta que acabou caindo na armadilha muito mais do que aqueles de Tarnac. Tal é, portanto, a verdadeira
significação e o verdadeiro skandalon do
caso Tarnac. O que se esconde por trás de um fiasco judiciário francês é a
constituição de uma reivindicada conspiração policial mundial, na qual Mark
Kennedy, oficialmente ativo em onze países – dos europeus aos Estados Unidos,
passando pela Islândia –, hoje é apenas o mais famoso peão.
Como
sempre, o discurso policial só contém verdade com a condição de invertê-la termo
por termo; quando a polícia diz: “Os euro-anarquistas estão elaborando uma rede
pré-terrorista europeia para atacar as instituições”, evidentemente é preciso
ler: “Nós, policiais, estamos driblando as instituições por meio de uma vasta
organização europeia informal a fim de atacar os movimentos que nos escapam”. O
ministro do interior, Manuel Valls, declarou em Roma que, face aos “processos
de radicalização em numerosos países”, fazia questão de acentuar a
cooperação no seio da Interpol contra as “formas de violência provenientes da
ultra-esquerda, de movimentos anarquistas ou autônomos.”
Ora,
o que acontece hoje na Europa, na Espanha, em Portugal, na Grécia, na Itália,
no Reino Unido, não é o surgimento ex
nihilo de grupos radicais que vêm ameaçar a quietude da “população”, mas os próprios
povos se radicalizando diante do evidente escândalo que é a ordem
presente das coisas. O único erro daqueles que, como as pessoas de Tarnac,
ocupam-se do movimento antiglobalização e da luta contra a devastação do mundo é de ter formado um signo anunciador de uma tomada de consciência que já é
geral.
É bem possível que, como
as coisas estão indo, um dia a recusa da identificação
biométrica, tanto nas fronteiras como na vida, torne-se uma prática difundida. O que
constitui a mais pesada ameaça para a vida das pessoas não são os quiméricos
“grupos terroristas”, mas a organização efetiva da soberania policial em escala
global e seus golpes sujos. A História nos lembra que as intrigas da Okhrana, a
polícia secreta russa, trouxeram pouca sorte ao regime czarista. “Não há força
no mundo que possa deter a força revolucionária quando ela insurge, e todas as polícias
do mundo, pouco importando seu maquiavelismo, suas ciências e seus crimes, são
quase impotentes”, anotava o escritor Victor Serge. Ele também daria esse
conselho em O que todo revolucionário
deve saber sobre a repressão, de 1926: “Se a acusação se baseia sobre uma
falsidade, não se indigne com isso: pelo contrário, deixe-a cair na própria armadilha
antes de reduzi-la a nada.”
Artigo publicado no dia 14/11/2012 no jornal Le Monde.
Disponível em:
http://www.lemonde.fr/idees/article/2012/11/14/le-secret-le-mieux-garde-de-l-affaire-de-tarnac_1790316_3232.html
(Tradução: Vinícius Nicastro Honesko).
Mais informações sobre o caso de Tarnac:
Mais informações sobre o caso Mark Kennedy:
http://www.guardian.co.uk/environment/mark-kennedy
Um comentário:
fantástico esse artigo.
desvenda, "comme il faut" a obviedade das manipulações dos governos/mídia do mundo.
tão bem articuladas que passam realmente desapercebidas pela imensa maioria.
Postar um comentário