Nascido
em Bordeaux, em 1940, Jean-Luc Nancy torna-se professor de filosofia na
universidade de Strasbourg em 1968, onde ensinará até 2004. Animado pela preocupação de uma retomada crítica
da grande tradição filosófica alemã, até então demasiado ignorada na
universidade francesa, ele reconhece no trabalho de Jacques Derrida essa mesma
exigência filosófica. A partir disso nasceu uma amizade. Na cidade alsacia,
entre os anos 1970-1980, Jean-Luc Nacy seguiu os passos de Levinas, a tal ponto
que “a escola de Strasbourg” parece retomar vigor. Com Philippe Lacoue-Labarthe
ele publica vários livros, dentre eles “Absolu littéraire” (Seuil, 1978). Mas,
sobretudo, Jean-Luc Nancy escreve a “Communauté désoeuvrée” (Bourgois, 1986).
Nos anos 1990 ele multiplica seus escritos e as colaborações com escritores ou
com artistas plásticos ou de cena. Desde os anos 2000 ele segue os passos da
desconstrução do cristianismo com “Déclosion” (Galilée, 2005) e “Adoration”
(Galilée, 2010). Tentado na juventude pela teologia, seu encontro com Derrida,
suas leituras de Althusser, Deleuze, Heidegger, Blanchot, Hölderlin o conduzem
a pensar um mundo fragmento no qual “o ser-em-comum”, “comunidade” ou
“comunismo” estimulam a existência. Ele acaba de publicar “Équivalence des
catastrophes”, em 2012 (Galilée).
A
partir de “Équivalence des catastrophes (Après Fukushima)”, o senhor considera
o século XXI pós-moderno. Por que ver aí uma tal ruptura histórica?
Jean-Luc
Nancy: Não penso que estejamos ainda no
pós-moderno. Nós estamos em um “pós-pós”, isto é, de fato em um “pré-”. Estamos
“antes” ou no começo de uma mudança sem dúvidas tão profunda e considerável
quanto o fim de Roma ou o Renascimento. A catástrofe de Fukushima representa um
momento decisivo pois ela é acontece em um tempo em que tudo está pronto a lhe
dar um sentido que ela não teria há vinte anos. O estado do capitalismo em
superaquecimento financeiro em face da irresponsabilidade de uma empresa
produtora de energia, os deslocamentos das relações geoeconômicas e políticas,
a evidência crescente da ausência de reflexão a longo e mesmo médio termo,
tanto ecológica quanto tecnológica, sociológica e de civilização. Tudo isso faz
de Fukushima um símbolo forte, alastrado para além da memória de Hiroshima. Com
efeito, foi o fechamento de um período: aquilo que com Hiroshima-Nagasaki podia
ter permanecido ambíguo provou-se unívoco. É claro que nós não sabemos, nem
queremos saber, o que fazemos, tampouco queremos e, sem dúvidas, podemos saber
o que deveria ser feito. O que fazer? não é verdadeiramente nossa questão. Mas,
ao contrário, muito mais: “Qual fazer?” Do que queremos falar?
O
senhor diz que a globalização capitalista leva a uma “catástrofe
civilizacional”?
Jean-Luc
Nancy: A globalização está a caminho há
muito tempo: ela se inscreve no mesmo princípio do capitalismo e de seus
correlatos técnicos e democráticos (sem que por essa expressão eu queira dizer
que técnica e democracia sejam integralmente e em todas as suas determinações
ligadas ao capitalismo – mas, até aqui, esses três termos avançaram juntos). O
capitalismo supõe, por definição, uma espécie de saída dos modos de vida
locais, territoriais e de reprodução da existência. A produção se define ao
mesmo tempo como produção da riqueza a partir do capital acumulado e em seguida
investido, e como produção da própria existência, esta que se torna tributária
dos bens produzidos, desde as especiarias até a velocidade informática,
passando pela energia nuclear. Ora, essa existência que se acreditou em
progresso por conta desses bens, descobre-se, na realidade, submetida a seu
autodesenvolvimento, o qual não pode mais indicar um “sentido”. Ou, ainda, que
indica um desejo de sentido errático, do qual os moldes neorreligiosos e
neofilosóficos são testemunhas. Prolifera aquilo que Marx chamava “o espírito
de um mundo sem espírito”. Mas mesmo Marx não diz o que podia ser o “espírito”,
portanto ele diz esse mundo privado.
De
acordo com o senhor, a análise crítica de Marx permanece atual, mas encontra-se
ultrapassada em alguns aspectos?
Jean-Luc
Nancy: No fundo Marx tinha confiança, de
uma maneira ao mesmo tempo kantiana e hegeliana, em um progresso e em um
cumprimento da história. Ele pensava que o capitalismo tinha uma “prestação histórica”
ao levar a humanidade até o ponto em que poderiam ser produzidas as condições
de uma liberação das sujeições e alienações da própria produção. Uma impulsão chamada “revolução” faria
alternar a existência inteiramente autoproduzida em uma repartição igual e
universal de todos os bens que podem dar valor à existência. Com efeito,
“revolução” era menos uma palavra política do que espiritual: a revolução teria
feito brilhar as centelhas de um espírito novo. Esse espírito teria
compreendido e feito resplandecer o “valor” puro extorquido em “mais-valia”: o
valor intrínseco do produtor humano. Marx era um humanista e seu sentido muito
aguçado e muito forte daquilo que ele nomeava “humanismo real”, para opô-lo às
bobagens tradicionais ou utopistas, tampouco pressupunha “o homem” como um
valor absoluto. Temos agora necessidade de pensar o homem mais do que
“humanamente”, se posso dizer. Mais ou de outro modo. Além disso, é preciso
pensar o homem em um mundo que ele, de modo muito amplo, metamorfoseou,
notadamente pelas necessidades de energia. A “revolução” permanece o nome de
uma exigência já de todo não identificada. Nós devemos re-identificar
“homem”, “revolução”, “história”... mas, sem dúvidas, antes re-identificar a
identidade!
Como encarar sob essa “equivalência
geral capitalista” um futuro, uma vez que “vale tudo”? Como pensar um mundo
novo?
Jean-Luc Nancy: Não pensamos o novo, não no sentido de
uma representação e de um projeto. Devemos procurar conceber e imaginar, por
certo, mas devemos também saber que apenas operam em profundidade de secretos
movimentos que trabalham sob as consciências, sob as ciências e sob as
filosofias, invisíveis, portanto. Quem inventou e desejou o capitalismo? Quem?
Marco Polo? Os Médicis? A Igreja? Francisco de Assis? Os “Cahorsinos”? Lutero?
Essas respostas são todas restritas e exatas. Mas na verdade é um conjunto de
povos, de estruturas e de mentalidades que iniciaram os movimentos articulando
cidades, comércios, as saídas do feudalismo etc.. O mesmo se dá para nós: não
podemos ver melhor o futuro do que podia um burguês de Cahors ao descobrir os
banqueiros lombardos por volta de 1430. Mas devemos estar atentos e
sensíveis ao que se modifica. Não ao inédito proclamado inédito, que é apenas
um valor mercantil hoje já obsoleto, mas ao inédito ainda não audível. Devemos
estar com as orelhas em pé, como aliás a música nos demanda já há um bom
século.
O senhor interroga a política. O que caracteriza
sua crise atual?
Jean-Luc Nancy: “Política” constitui a palavra mais
usada do nosso léxico. Quer dizer tudo: ao mesmo tempo governo, posições
estratégicas e concepção global da vida ou do sentido. Com efeito, ela designa
ao mesmo tempo uma esfera separada de outras esferas e um invólucro de todas as
esferas. Ou melhor, nós a reservamos para a revolta contra a dominação – e
ainda mais no momento da revolta (insurreição, poder constituinte) do que à sua
conclusão (instituição revolucionária). É uma palavra esquartejada, da qual dá
conta a surpreendente expressão “politicagem” [politique politicienne]. Como se falássemos de “cozinhagem” [cuisine cuisinière], em um sentido
pejorativo. E eu mesmo o fiz: falar “do” político diferenciado “da” política não
é melhor. É tão somente nebuloso. A crise da política é apenas um aspecto de
uma mutação geral das ordens simbólicas. Os valores, os signos, as apostas
daquilo que nomeamos “vida” e “morte”, “indivíduo” e “comunidade”, “Deus” e
“homem”, “história” e “espaço”, “exceção” e “banalidade” encontram-se em um
estado particularmente turvo, isto é, caótico, no interior da sociedade dita
“desenvolvida”, assim como na escala das confusões e complexidades mundiais.
Trata-se de “governar”? Mas governar o quê? Um sistema bancário, empresas
multinacionais? Um Estado? De que tipo? Trata-se, ao contrário, de pensar o que
é ser-em-comum já que nem Deus nem nenhum mestre nos dão a razão desse “ser”?
Então, é mais do que “política”, se essa palavra não pode mais designar o
“espaço público” que podia representar a cidade grega para seus cidadãos,
homens “livres” distintos de seus escravos, das mulheres e dos estrangeiros.
O sentido de uma existência em comum
não necessita, portanto, da política como intervenção e reapropriação
coletivas?
Jean-Luc Nancy: A “reapropriação” é mais do que
“política”, no sentido que acabo de esboçar. Por certo ela deve indicar uma
política ou políticas. Mas ela é sobretudo da ordem do “espírito” ou do
“sentido”. Todos estão de acordo para dizer em voz baixa que o dinheiro “não
vale nada”. Mas, em voz alta, só entendemos o valor monetário... Falemos de
outro modo. Eu não guardaria essa palavra, “reapropriação”. Por que “re”? Retornar
a quê? O que nos foi furtado? Nada, talvez: antes de sermos forças de trabalho
e unidades cidadãs, éramos servos de um senhor ou do senhor Deus. É disso que é
preciso se reapropriar? Ou ainda, trata-se de “propriedade”? Qual? Marx dizia
“propriedade individual” para opô-la à “propriedade privada” e à “propriedade
coletiva”. Bela ideia, mas o que quer dizer “individual”? Marx certamente nela
não percebia nenhum individualismo. Ele pensava – de modo vago – algo que alguns hoje
nomeariam “sujeito”, no sentido de afirmação de um ato de existência, de uma
singularidade que valha absolutamente por si mesma. Ora, disso não “se
apropria”, não sem se distanciar de todas as formas de propriedade: a riqueza,
o “eu”, a identidade...
De acordo com o senhor, trabalhar “para
um mundo e um homem melhores” é “pensar o presente e pensar no presente”. O
senhor rejeita, portanto, a visão da mudança como projeto?
Jean-Luc Nancy: Como projeto, sim. A projeção, o
planejamento, a prospectiva e a programação não fizeram mais do que pro-jetar o
que era possível de pré-calcular em um momento dado, sempre. E, por
consequência, bloquear a imagem de um futuro já em liberdade vigiada [assigné à résidence][1]. Claro, é preciso prever e calcular: mas é preciso, antes, chegar
a ver o que deve ser visto e, por consequência, pre-visto. É necessário projetar
com antecedência mais carros? Veículos movidos a energia diferente, mas com o
princípio idêntico de deslocamento quase individual? Sem carros e outros transportes?
Quais? Para qual gênero de cidade? Qual gênero de viagem? Chegamos rapidamente
para além do projetável e do possível. Ora, trata-se de um fora-do-possível,
sempre! Os burgueses, em 1430, não tinham nenhuma ideia do que iria acontecer
em 1492, quando Colombo chegaria em uma ilha “americana”. E em 1930 não
tínhamos a menor ideia da Europa e do mundo em 1992. O que não quer dizer que
não é preciso fazer nada: é preciso estar atento, mas atento ao que não é
visível, reconhecível, formado...
O senhor fala de uma “strução” para um
“pensamento comum”...
Jean-Luc Nancy: Quero dizer que depois de longas e
potentes construções, seguidas de também longas e massivas destruições, e por
meio de descontruções que abriram o caminho para desmontagens e suspensões, um
tempo chega para considerar a ou as strução(ões), isto é, a partir do latim, os
montes, as pilhas, os elementos não construídos, sem arqui-tetura, conjuntos
an-árquicos, isto é, an-arquistas como a verdade de nossa situação. É preciso
que pensemos dentro disso. Não está construído, edificado, nem é edificante. É
an-árquico. O que isso nos diz de nós mesmos?
O senhor frisa a validade de um
“comunismo de inequivalência”, no que diz respeito ao fato de que ele permite a igualdade e com a finalidade de afastar
a catástrofe?
Jean-Luc Nancy: Sim, uma igualdade que não seja medida
pela equivalência das mercadorias, portanto, de nossas forças de trabalho
enquanto mercadorias, eventualmente representadas como cédulas de voto e como
“direitos imprescritíveis”. Não uma igualdade de nivelamento, mas uma igualdade
de dignidades, todas, no fundo, inequivalentes? Eu valho para você? Você vale
para mim? Falemos de nossos salários? De nossos méritos? Quais? De nossas
qualidades morais? Quais? Ninguém vale nada e todos valem por valer
exclusivamente um valor absoluto e não comparável.
Distinguindo a “sociedade” da
“comunidade”, o comunismo é visto mais como um “ser-em-comum” do que como um
“bem comum”. Em que tal concepção permite, no geral, avançar?
Jean-Luc Nancy: A palavra “comunismo” carregou, há mais
de dois séculos, a seguinte questão. Uma vez a sociedade exposta como tal, como
“associação” dos interesses e das forças, e uma vez a “insociável
sociabilidade” (Kant) dessa sociedade reconhecida como tal, de duas uma:
ou não estamos de modo algum “em comum”, e é preciso gerir o relativo equilíbrio "social" apenas pela força, pelo
dinheiro e pela lei; ou estamos verdadeiramente
“em comum” e uma existência isolada não tem nenhum sentido. É exatamente isso que é
preciso pensar. Ora, todos nós vivemos isso, sabendo ou não. Caso contrário,
por que estaríamos aqui falando numa conversa que será publicada a fim de que
outros dela participem?
[1] N.T.: “Assignation à résidence” é um termo jurídico francês que indica a
decisão por meio da qual a administração pública obriga um estrangeiro a
residir em um lugar determinado e a se apresentar periodicamente aos serviços
de polícia.
Original em francês disponível em: http://www.humanite.fr/547748 (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
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