Jeovan Lopes de Oliveira Júnior*
Qual é o maior problema que um filósofo pode resolver? Ao longo da história da filosofia, muitos pensadores se dedicaram a diferentes e inquietantes questões. Por que há o ser e, não antes, o nada? Qual é a forma de governo justa? Há limites ao conhecimento humano? Quais são as leis universais do pensamento? Qual é o fundamento do belo? O que é ser livre? Mesmo após dois mil e quinhentos anos de um esforço hercúleo na tentativa de respondê-las, os filósofos ainda não encontraram as respostas que procuram; mas isso, em vez de desapontá-los, redobra-lhes o ânimo para continuar trilhando a estrada da filosofia.
Qual é, entretanto, a questão fundamental que engaja o filósofo, a questão que faz com que ele saia do estado em que se encontra para aderir ao espinhoso caminho do pensamento filosófico? Como tudo o que envolve a filosofia, não poderei dar uma resposta definitiva, aceita por todos; posso apenas apontar aquela que me parece mais forte no momento.
Voltando alguns milhares de anos, podemos ver na Grécia antiga um homem incomodando os moradores de Atenas. Ele interpela importantes figuras da cidade grega com questões embaraçosas que, muitas vezes, causam constrangimento a quem é interrogado. No fundo, ele não procurava a resposta a nenhuma daquelas perguntas; o que queria mesmo era averiguar se a revelação proferida pelo oráculo de Delfos era verdadeira: ser ele o homem mais sábio da cidade. A caminhada filosófica de Sócrates começa com uma inquietação sobre si mesmo.
Alguns séculos depois, na antiguidade tardia, vemos um homem inquieto, tentando insistentemente conciliar sua fé com sua filosofia. Em seu momento de maior perplexidade diante de seus dilemas, diz Santo Agostinho em suas Confissões: “tornei-me para mim mesmo um problema, e esta é a minha fraqueza”. Não poderia ser diferente, o maior problema para o filósofo é o próprio filósofo. Este sempre foi o verdadeiro problema; Agostinho só não tinha se dado conta ainda.
A filosofia exige que aqueles que se envolvem com ela se tornem inquietos, incertos, ainda por se resolver, uma questão em aberto. A filosofia é uma companheira ciumenta e narcisista. Quer que seus amantes lhe dediquem toda sua vida; quer que seus amantes sejam uma espécie de reflexo de si própria. Dá-se tudo para conquistá-la, dá-se tudo para viver conforme as convicções filosóficas em que se acredita. Quem não se lembrará de Wittgenstein, filósofo do século passado que, entendendo que nada mais deveria ser dito sobre a filosofia, larga a carreira acadêmica e vai viver uma vida simples, longe das discussões metafísicas? Mas um filósofo é sempre um problema para si mesmo. Anos depois, o pensador austríaco retoma a discussão sobre aquilo que outrora prometera calar-se. Agora jurava ter uma nova solução ao problema que o assombrava. A nova resposta só surgiu com a mudança ocorrida com o próprio filósofo, que, já não nos espantemos, é o real problema. A um novo problema, de fato, uma nova solução.
Mas será a história da filosofia apenas um amontoado de homens inquietos tentando resolver seus próprios dilemas? Se isto for verdade, por que as dúvidas de Sócrates, Agostinho ou Wittgenstein continuam retornando ano após ano, como almas que ainda não encontraram seu descanso eterno e estão vagando pelo mundo dos vivos? Por que nossas dúvidas são tão semelhantes às dos filósofos que viveram antes de nós? Por que eles insistem em nos deixar sem resposta diante de suas perguntas? As inquietações dos filósofos não dizem respeito somente aos homens particulares que as formularam; na verdade, dizem respeito a todo gênero humano. Os filósofos são uma parte da consciência humana que exterioriza aquilo que a incomoda no seu íntimo. A humanidade, desde sempre e para sempre, pode dizer a si mesma: “tornei-me para mim um problema”.
Se duvidas do que digo, prestes atenção se em algum momento o ser humano alcançou todas as respostas que procurava. Os poetas deram-nas todas? Os sacerdotes extinguiram os espíritos inquietos? A tecnologia moderna está sendo o suficiente para dar conta da realidade? Os filósofos alguma vez sanaram todas as dúvidas do espírito humano? Nesta antropogênese inacabada, o homem faz a si mesmo a medida que vai descobrindo mais inquietações escondidas dentro de si e tenta, de alguma forma, solucioná-las.
Ora, alguém pode dizer, se a filosofia é sobre dar respostas aos problemas do ser humano e ela não consegue fazê-lo de forma definitiva, qual espaço há para sua existência? Não passa de um projeto fracassado. Só pensa dessa maneira quem não enxerga que a dúvida é, antes de tudo, um sinal de liberdade. Só pode duvidar quem não está plenamente determinado, quem tem em si um espaço que não foi preenchido, quem não está com a consciência ausente ou inoperante. Os mortos de nada duvidam. A dúvida causa mudança; a dúvida impulsiona a humanidade adiante. Tolher a dúvida humana é tolher sua liberdade e, por fim, sua própria humanidade. Se a filosofia é o espaço da dúvida, então ela não poderia não existir como um fenômeno humano.
Como pode alguém defender que a filosofia acabe, então? Tal proposição só pode ter origem em uma mente totalitária, que promete enganosamente acabar com os questionamentos e os problemas do mundo. Uma mente que jura ter o segredo para trazer à tona o homem ideal. Propor o fim da filosofia é propor o fim da humanidade como a conhecemos. É uma humanidade que vacila, que sofre e que se arrepende na busca da solução de suas questões; mas é uma humanidade livre, capaz de se reerguer, ainda que com muito custo, perante seus erros. Os homens têm o direito de errar, afinal, eles ainda não estão prontos. O mundo dos mortais está sempre por fazer-se. O fim da filosofia, seja por força, seja por um evento escatológico em que a humanidade encontre todas as respostas que deseja, é o fim do ser humano como o conhecemos.
A esfinge da filosofia continua a lançar seus enigmas. Não é possível subjugá-la pela violência; somente podemos tentar solucionar seu desafio. Nos encontramos como Édipo perante aquela criatura assustadora e majestosa a sua frente no meio do deserto. Após sobrepujar a esfinge, Édipo, pensando ter alcançado a glória, só encontra a tragédia. O que será do homem quando superar a filosofia? Encontrará a perpétua paz do paraíso ou o mais terrível dos sofrimentos do inferno? Seja como for, a filosofia continua a ser o espaço reservado a todos aqueles que se enxergam como um problema. Permitam-nos existir; permitam-nos resolver a nós mesmos.
* Graduando em filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Imagem: Gustave Moreau. Édipo e a Esfinge. 1864. Metropolitam Museum of Art, NY.
Nenhum comentário:
Postar um comentário