quinta-feira, 24 de junho de 2010

As últimas palavras do herege



O futuro não está privado de história, ao que eu saiba. Se a finalidade possível de nossa história é a industrialização planetária, isto não quer dizer que o futuro do homem se desenvolve mecanicamente. O futuro é previsível, a história, não. Ou seja, os sociólogos podem prever um monte de coisas: as formas das residências, a quantidade de botões de calções que serão fabricados na Alemanha, o número de crianças que nascerão albinas, talvez... Mas a fluidez histórica do futuro sempre lhes escapará. Ela não é exprimível.

Pier Paolo Pasolini. As últimas palavras do herege. Entrevistas com Jean Duflot. São Paulo Brasiliense, 1983. Trad.: Luiz Nazário. p. 78.

Foto: Elliot Erwitt. 1953. NY.

sábado, 15 de maio de 2010

O duplo placentário


Decir que la placenta ha acabado en los tiempos modernos en la basura, aunque sea en la basura de reciclaje, ya sería ciertamente afirmar demasiado. Porque, en el fondo, el órgano que nos prepara a empezar a contar desde dos, y a llegar hasta aquí desde allí, es algo que realmente no habrá existido jamás oficialmente en el nuevo mundo de individuos sin compañía. Incluso retroactivamente, al sujeto se le convierte en un ser aislado y se le acondiciona en su ser prenatal como un primero sin segundo. Sería fácil demostrar que el individualismo moderno sólo pudo entrar en su fase álgida cuando en la segunda mitad del siglo XVIII comenzó la general excomunión clínica y cultural de la placenta. El etamento médico oficial, como si se tratara de una inquisición ginecológica, tomó a su cargo garantizar que la recta creencia en el haber-nacido-solo se anclara firmemente en todos los discursos y disposiciones de ánimo. El positivismo individualista burgués, frente a débiles resitencias del romántico compañerismo anímico, impuso socialmente la radical e imaginaria incomunicación de los individuos en los senos maternos, en las cunas y en la propia piel. Ahora, habiéndoseles robado su segundo, todos los individuos se convierten en algo inmediato a las madres y, acto seguido, en algo inmediato a la nación totalitaria, que a través de sus escuelas y ejércitos extiende sus redes sobre los niños solos. Con el establecimiento de la sociedad burguesa comienza una época de falsas alternativas, en la que los individuos sólo parecen enfrentarse a la elección de o bien abandonarse al goce del pecho de la naturaleza o bien, en fusiones colectivas con sus pueblos, lanzarse a aventuras de poder potencialmente mortales. No en vano encuentra uno al maestro pensador del regreso a la absorbente naturaleza y al patético Estado nacional, Jean-Jacques Rousseau, como figura de portal tan cautivadora como grotesca, a la entrada del mundo estructuralmente moderno, individualistamente holista. Rousseau fue el inventor del ser humano sin amigo, que sólo podía pensar al otro complementador bien como madre naturaleza inmediata o bien como inmediata totalidad nacional. Con él comienza la era de los últimos seres humanos, los que no se avergüenzan de aparecer como productos de su medio y como casos particulares de leyes psicológico-sociales. Por eso desde Rousseau la psicología social es la forma científica del menosprecio por el ser humano.
Cuando, por el contrario, como sucede en la Antigüedad y en las tradiciones populares, se había dejado una plaza abierta para el doble del alma, los seres humanos, hasta el umbral de la Modernidad, podían cerciorarse de que no son algo inmediato a las madres ni algo inmediato a la "sociedad" o al "propio" pueblo, sino que durante toda su vida permanecen prioritariamente unidos a un segundo absolutamente interior, al auténtico aliado y genio de su particular existencia. Cuya formulación superior aparece en el mandamiento cristiano de que habría que obedecer a Dios más que a los hombres. Esto significa: ningún ser humano es un "caso", ya que cada individuo es un misterio, el misterio de una soledad complementada. En tiempos antiguos el doble placentario tambiém podía encontrar refugio con facilidad entre los antepasados y los espíritus de la casa. El medio íntimo arcaico de uno mismo procura al sujeto distancia frente a las dos fuerzas obsesivas primarias tal como se manifiestan modernamente: frente a las madres sin distancia y frente a los colectivos totalitarios. Pero cuando, como sucede en la Modernidad más reciente, el espacio-con es anulado y desechado desde el principio, al destruir la placenta, el individuo cae, cada vez más, bajo la influencia de los colectivos maníacos y de las madres totalitarias: o en la depresión, en su ausencia. Desde entonces, el individuo, sobre todo el masculino, fue empujado a enredarse cada vez más profundamente en la fatal alternativa: o el obstinado aislamiento autista o el dejarse-tragar por comunidades obsesivas - de dos o de muchos-. De camino aparentemente a la liberación personal surge el ser humano sin espíritu protector, el individuo sin amuleto, el sí-mismo sin espacio. Si los individuos no consiguen estabilizarse y complementarse ellos mismos mediante técnicas de soledad - como ejercicios musicales o soliloquios por escrito, por ejemplo -, practicadas con éxito, están predestinados a ser absorbidos por colectivos totalitarios.

Peter Soloterdijk, Esferas I. Burbujas. Madrid: Ediciones Siruela, 2003. Traducción: Isidoro Reguera. pp. 350-352.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Páthos

Man Ray, Observatory Time - The Lovers (1936).


mesmo ateu
anjos invento
apenas para velar teu sono.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Um despertar

(...) assim, quando acordava no meio da noite, e como ignorasse onde me achava, no primeiro instante nem mesmo sabia quem era; tinha apenas, em sua singeleza primitiva, o sentimento da existência, tal como pode fremir do fundo de um animal; estava mais despercebido que o homem das cavernas.
PROUST, Marcel. No caminho de Swann. (Tradução Mário Quintana). 3ª Ed. São Paulo: Globo, 2006. p.23.

sábado, 27 de março de 2010

Um epitáfio a Raísa



Na segunda-feira do dia 11 de fevereiro de 2009, atrás das pedras do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, próximo ao mar, foi encontrada, morta a pedradas e com marcas de violência sexual, uma menina de nove anos. Vestia apenas a parte de cima de uma fantasia de carnaval.


Uma diminuta nota de um jornal de grande circulação do dia 18 de fevereiro, uma quinta-feira[1], no canto universalmente ignorado pelos leitores-espectadores distraídos como somos todos, atesta o reconhecimento do cadáver. A menina desapareceu brincando nas proximidades dos Arcos da Lapa. Na última vez em que foi vista em vida, foliões afirmam o fato, pedia um enfeite carnavalesco a um estranho.


O relato sucinto vem implicitamente acompanhado dos porquês da brevidade da nota - abissal no contraste de uma página inteira dedicada à discussão sobre as modalidades de empréstimo de empresas de ensino junto ao BNDES: era filha de uma vendedora de balas, na rua. A mãe trabalhava no momento do desaparecimento. Morava com mais quatro irmãos em um prédio ocupado no centro do Rio. O pai, que não convivia com a menina, é pedreiro.


Dizia o filósofo alemão Walter Benjamin, em conhecido texto de 1936, que bastaria olharmos para qualquer jornal diário para percebermos que, da noite para o dia, não somente a imagem do mundo exterior, mas também a do mundo ético sofreu abalos que outrora julgaríamos inimagináveis. O ensaio tem como mote principal discutir, a partir da obra de Nikolai Leskov, sobre a crise da arte de narrar que vem acompanhada, na modernidade pós primeira guerra mundial, de um decréscimo cada vez mais extremo da possibilidade de intercambiar experiências (“Erfahrung”) humanas válidas. Esta constatação, que já antevia algumas das questões cruciais que só terão seus sombrios desdobramentos após o início da década de 40, soa como um prognóstico que o parque temático macabro (o parque temático é o não-lugar, prótese antropológica por excelência, onde toda a experiência autêntica é vetada em sua concomitante simulação) que tomou conta do mundo contemporâneo reafirma e constantemente ultrapassa em sua vileza. Ultrapassamento do trágico: para as catástrofes humanas que vivenciamos de forma cotidiana - diretamente ou narcoticamente mediatizadas pela informação espetacular - talvez não sejam mais adequadas as categorias de catarse e, conseqüentemente, de luto. Restaria, portanto, apenas esta irreconciliação permanente com os fatos, uma vertigem somatizada em náuseas e em uma profunda apatia.


Os fatos do dia 11 de fevereiro, nesse sentido, gritam por si. Não necessitam de tratados criminológicos e de patologia social – é sabido que a psicopatia perversa grassa como erva daninha nas esquinas do mundo. Tampouco da ladainha obtusa do discurso da “lei e da ordem” como resposta para “as doenças” da sociedade. Nem do sensacionalismo da indústria policial-midiática da miséria cada vez mais lucrativa. Não, nada disso. Fiquemos apenas com os fatos.


Uma criança morreu da maneira mais traumática possível. Os elementos do enredo macabro só reafirmam o caráter de Shoah - dano irreparável, termo quase intraduzível do hebraico, próximo a um mal radical, para lembrar Kant - que permeia este crime.


Em termos tão-somente normativos e hipotéticos (pura deontologia rechaçada pela vida tal qual é) não precisaríamos nem citar Adorno, que dizia não serem mais possíveis poemas após Auschwitz: os carnavais – estas festas midiáticas disciplinadas de culto pentecostal ao nada (longe, muito longe de ser uma festa pagã!) – simplesmente não deveriam mais ser eticamente tolerados após este fato. Jornais-empresas talvez devessem, por si sós, não por censura ou decretos executivos, mas por náusea, estupor e última trincheira de lucidez ainda existente em seus administradores e operadores, serem desativados, pois claro está sua instrumentalização a meros artefatos de classe, mantenedores de um estado fictício de exceção onde o burburinho, a bisbilhotagem e o oportunismo curvam-se ao pés sagrados da mercadoria. Até a arte é indiretamente maculada com este crime. Uma silenciosa cumplicidade: nas costas de um Picasso ou de Van Gogh, transformados que foram em fetiches e moedas de troca preciosíssimas no mercado enquanto tal - belo tornado esquizofrenia diante da vida cotidiana dilacerada - uma criança, vulnerável em todos os sentidos do termo (principalmente economicamente, sentido que hoje comanda e acarreta todos os demais) foi brutalmente morta sem que deste ato repercuta qualquer conseqüência, nem mesmo uma comoção pública - por mais cinicamente fascista que ela seja.


Jogada na vala comum das estatísticas oficiais, sem direito a obituário. Silenciada em vida assim como na morte.


Um digressão pessoal final.


Para meu próprio pasmo e ira, contudo, em termos mundanos atuais tudo isso representaria ainda uma posição sentimental. As Raísas – seu nome era Raísa de Souza da Silva, e espero que com este texto pelo menos o seu nome fique marcado em minha memória também relapsa - são milhares. Da África ao Oriente Médio, da Europa Central e do Leste ao Extremo Oriente, passando pelas Américas e pelo Haiti - o centro nevrálgico e local de exposição da verdade deste planeta sonambúlico - incontáveis são os infanti sacri (uma versão infante e “pós-moderna” dos “homini sacri”[2] da antiga Roma). Mortos por bombas, fuzis, por traficantes de órgãos, sepultados em vida em porões, degolados, aniquilados por catástrofes evitáveis.


E o mais intrigante é que o espetáculo (que se tornou não apenas uma regra, mas a realidade genericamente aceita!), rompendo facilmente com o sollen ético, continua em ritmo carnavalesco e turbinado. O grande culto pentecostal a céu aberto que tomou conta de todo o mundo dá mostras de não poder ser interrompido.


Festejemos e observemos em nossos “reservados VIPS” este festival macabro. Narcotizemo-nos! Mesmo que os pedido de silêncio e basta sejam dos mais triste e intolerável luto. Mesmo que estejam além dos confins do próprio trágico. Grafado está o projeto civilizatório do capitalismo espetacular contemporâneo, sua tanatopolítica.


Um pensador brasileiro certa vez lançou um imperativo melancólico e quixotesco que talvez apenas hoje possa ser explorado em todas sua potencialidades: há apenas duas opções, a indignação ou a resignação. Dizia ele não querer se resignar nunca. Talvez esta seja a última batalha, quiçá já perdida de antemão, que se apresenta para aqueles que ainda ousam estar em vigília em um mundo onde tudo se tornou possível, mesmo o imponderável.








[1] Folha de São Paulo de quinta-feira, 18 de fevereiro de 2009. Caderno Cotidiano, p. C12.


[2] “Festo, no verbete sacer mons do seu tratado Sobre o significado das palavras, conservou-nos a memória de uma figura do direito romano arcaico na qual o caráter da sacralidade liga-se pela primeira vez a uma vida humana como tal. Logo após ter definido o monte sacro, que a plebe, no momento de sua secessão, havia consagrado a Júpiter, ele acrescenta: At homo sacer is est, quem populus iudicavit ob maleficium; neque fas este eum immolari, sed qui occidit, parricid non damnatur; nam lege tribunicia prima cavetur ‘si quis eum, qui eo plebei scito sacer sit, occiderit, parricida ne sit.’ Ex quo quivis homo malus atque improbus sacer appelari solet.” (“Homem sacro é, portanto, aquele que o povo julgou por um delito; e não é lícito sacrificá-lo, mas quem o mata não será condenado por homicídio; na verdade, na primeira lei tribunícia se adverte que ‘se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida’.”). AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. (Tradução de Henrique Burigo). Belo Horizonte, ed. UFMG, 2002. p.77.

Imagem. G. Giuggioli. Labirinto con cipressi. www.giuggioli.it

quarta-feira, 17 de março de 2010

Desertar


A pena do degredo sempre foi uma das mais severas na história do direito penal. Desterrado é aquele que, como sanção a seus atos, foi excluído da comunidade dos homens, tendo que conviver com as bestas no puro mundo da physis, além das muralhas protegidas da cidade. O equivalente espontâneo do desterro é a deserção. Desertar é ousar por conta própria enfrentar a solidão dos desertos. O gesto de insana lucidez do Timão de Atenas shakespeariano. Deserção de um rebanho, de uma facção, de uma versão compartilhada, de uma forma de vida genericamente aceita. A má-fé e a casca de virtudes da burguesia mantém uma completa ojeriza à deserção. A deserção é o mais perfeito desceuvrement. Ah quem tivesse a força para desertar deveras! Já dizia um inspirado Álvaro de Campos. O mundo dos dispositivos disseminados e hipertrofiados - que fazem com a que vida humana seja tão-somente sobrevida mantida por intermédio de aparelhos e antidepressivos - impõe-nos duas alternativas básicas e inconciliáveis: ser um canalha ou ser um desertor. Esta, a opção dos raros.



(Escrito em um momento de leninismo ou stalinismo de uma negatividade jogada contra si mesma, seja lá o que isso queira significar.)

Imagem: Abbas. México. Magnum photos. Província de Guerreiro, Vila de Santo Agostinho. 1985.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Bateu um vento na roseira...


O peso de uma caneca cheia de café com leite era equivalente ao peso de minha vida naquele instante. Figuras das mais diversas manhãs invernais: encasacados, perambulando por algumas ruas de mais uma das cidades planejadas pelos ingleses que cá estiveram. Tempos – muito depois dos ingleses – em que galhos no portão sinalizavam a presença daquele café com leite, de umas bolachinhas e de umas boas horas de conversa e risadas à toa, assim, pelo simples fato de rir. Galhos que às vezes traziam também algumas preocupações, aquelas contumazes, mas que sempre vinham de maneira diferente. Um caminhar lento e despretensioso, com muito sentido, não uma direção, mas as mesmas direções com muito sentido. E um café com leite na canequinha de louça, aquela, a do dia a dia, a de sempre. O gosto era mais especial, aliás, tão bom quanto esse era só a sensação de água fresca do filtro de barro na caneca de alumínio. Nesse filtro uma toalhinha com bordados de crochê tampava a marca “São João”. E o crochê estava por tudo: pelo chão da casinha nº2, em tapetes que a enfeitavam; nas camas, as colchas; nas janelas, as cortinas. Recentemente o crochê se tornara mais difícil, talvez pelos nozinhos dos dedos, bem mais grossos do que as falanges, que, acho, às vezes deviam doer (aquela silenciosa dor). Agora eram os aventais com passarinhos: proteção para os peitos e para os peitos que naqueles peitos mamaram. Na sala, os papeis desordenados, uma bagunça de contas de água, luz e telefone anotadas com uma caligrafia torta e desenhada. Números que às vezes pareciam pontas de narizes de rostos por desenhar, ou, talvez, a ponta de uma orelha? Não sei, não sei... eram porventura também fruto daqueles nozinhos dos dedos, que possivelmente dificultavam a escrita daquelas mãos com tão pouca habilidade nessas histórias de papel e caneta. Mas pra que tantos números e tanta correição se a vida estava lá fora, nas cadeiras de varanda, nos rostos felizes e sorridentes do pessoal que ali todos os dias se reunia, assim, para rir à toa? Vida reunida num só ventre, de um só ventre. Aquela vida, porém, que, como a minha, agora pesava justamente uma caneca de café com leite, nada exigia. Os dias, as tardes, passavam tão de pressa que aquele frequente “é cedo Tuta” soava sempre frágil e esperançoso, como que a desejar a tarde seguinte, e a seguinte, e a seguinte... Desejo estampado nos olhos e no sorriso maroto, pronto para suportar o cheiro e a força da solução do sal amoníaco em água, mistura imprescindível pro gosto daquelas tardes. Desejo de um ser qualquer, qual-quer... Quodlibet ens est unum, verum, bonum. E talvez os transcendentais a ela se aplicassem em demasia... E neste instante o café com leite na caneca de louça se equivale ao meu ser e se rarefaz na minha historicidade, esta, das tardes de sol com cadeiras de varanda com risos incandescentes, dos assombros sempre previsíveis diante de pequenos incidentes, dos passos lentos e compassados pelas calçadas das ruas planejadas, dos galhos enfiados em meio às grades dos portões e das rosas que me cobriam nas noites que dormia fora e me esquecia do cobertor...
quase 27 de fevereiro de 2010... Vini