terça-feira, 5 de abril de 2011

Malditos, gozosos e devotos


Num dia em que começaram certos ventos do sul, em que me peguei a vagar com a cabeça tonta e cheia de dedos, em que soltei suspiros antigos de outros pulmões, deparei-me com os "Poemas Malditos, Gozosos e Devotos" de Hilda Hilst. Como uma centopeia negra caminha em curvas, perdida em meio a tantos pés, perdi meu tempo num outro tempo. Fui absorvido, nefastamente absorvido por aqueles cantos ao Nada, por aqueles cantos a Deus. E talvez a epígrafe de Simone Weil - "Pensar deus é apenas uma certa maneira de pensar o mundo" - pudesse me dar tanto a pensar, pudesse me dar um mundo a pensar. Mas é com os poemas que o meu pensar se esvai em silêncio e talvez me imobilize numa experiência da linguagem, numa experiência do abismo de deus.
A experiência da leitura de Hilst é algo como o aprofundar-se no silêncio da linguagem pretendido pelos monges sírios da tardo-antiguidade. Como nesta passagem de "João, o solitário", que viveu aproximadamente entre a segunda metade do século V e o começo do século VI:
"Silêncio é Deus, e no silêncio é cantado a Deus o cântico que é digno dele. Não digo no silêncio da língua. Se alguém se cala com a língua não sabendo cantar na mente e no espírito, este, no seu silêncio, é ocioso e maus pensamentos vêm até ele pois se cala exteriormente, mas não sabe cantar interiormente, uma vez que não foi ainda dissolvida a língua do homem escondido porque balbucia. Como de fato observas aquele infante interior, espiritual, porque como é firme a língua do jovenzinho que não conhece ainda palavra, e a sua língua somente está dentro da boca, não tendo o movimento da palavra, assim também a língua interna à mente será muda de toda palavra e de toda consideração e somente estará e será pronta para aprender o balbucio do discurso espiritual."
Os poemas malditos de Hilst, no entanto, não se encaixam em modelos de procura de um deus dado desde sempre, de um ser divino apaziguador. Como alerta a nota de Alcir Pécora, "nos poemas deste livro, em particular, Deus não é senão dúvida, dor e ameaça do vazio. Na hipótese menos negativa, a ideia de Deus toma a forma de um 'mistério' no qual as parcas respostas que se pode obter pendem sempre de sinais difíceis, escondidos, que comumente apenas manifestam a insubstancialidade ou a insuficiência essencial da matéria divina face ao desejo humano. [...] os poemas hilstianos em busca do divino estão sempre a um fio de tocar o vazio."
O silêncio da linguagem que Hilst nos proporciona, diferentemente do ideário transcendente da vida futura apregoada pelos monges, é quase um toque na ferida do Real - um toque no vazio -, um sentir-se mudo (uma descida ao abismo de Sigé) sem mais balbucios senão aqueles que expõem o poema como tal, que, derramando sangue, colocam-nos frente a frente com nossa condição de falantes de uma língua que é um puro sem-sentido diante do enigma da existência e sua nomeação; na distância entre o sem-nome divino (ou do nome vazio do divino) e o nome abjeto do homem, a "Poeira".
Deixo a palavra com Hilda:

XVIII
Se some, tem cuidado.
Se não some é fardo.
Cuida que ele não suma

Pois ficará mais pesado
Se sumir de tua alma.

É de uma Ideia de Deus que te falo.
Pesa mais se ausente
Pesa menos se te toma

Ainda que descontente
Te vejas pensando sempre
Num alguém que está aí dentro
De quem não conheces rosto
Nem gosto nem pensamento.

Cuida que tal ideia
Te tome. Melhor um cheio de dentro
Que não conheces, um fartar-se
De um nada conhecimento

Do que um vazio de luto
Umas cascas sem os frutos
Pele sem corpo, ou ossos
Sem matéria que os sustente.

Toma contento
Se te sabes pesado
Dessa ideia de Nada.
É um pensar para sempre.

E não sentes verdade
Que a vida vale em extenso
Altura e profundidade
Se vives do pensamento?

XIX
Teus passos somem
Onde começam as armadilhas.
Curvo-me sobre a treva que me espia.

Ninguém ali. Nem humanos, nem feras.
De escuro e terra tua moradia?

Pegadas finas
Feitas a fogo e a espinho.
Teu passo queima se me aproximo.

Então me deito sobre as roseiras.
Hei de saber o amor à tua maneira.

Me queimo em sonhos, tocando estrelas.

XX
Move-te. Desperta.
Há homens à tua procura.
Há uma mulher, que sou eu.
A Terra mora na Via-Láctea
Eu moro à beira de estradas
Não sou pequena nem alta.

Sou muito pálida
Porque muito caminhei
Nas escurezas, no vício
De perseguir uns falares
Teus indícios.

Move-te. Tua aliança com os homens
Teu atar-se comigo
Tem muito de quebra e dessemelhança.
Muitos de nós agonizam.
A Terra toda. Há de ser quase
Brinquedo adivinhares
Onde reside o pó, onde reside o medo.

Não te demores.
Eu tenho nome: Poeira.

Move-te se te queres vivo.

XXI

Não te machuque a minha ausência, meu Deus,
Quando eu não mais estiver na Terra
Onde agora canto amor e heresia
Outros hão de ferir e amar
Teu coração e corpo. Tuas bifrontes
Valias, mandarim e ovelha, soberba e timidez

Não temas.
Meus pares e outros homens
Te farão viver destas duas voragens:
Matança e amanhecer, sangue e poesia.

Chora por mim. Pela poeira que fui
Serei, e sou agora. Pelo esquecimento
Que virá de ti e dos amigos.
Pelas palavras que te deram vida
E hoje me dão morte. Punhal, cegueira

Sorri, meu Deus, por mim. De cedro
De mil abelhas tu és. Cavalo-d'água
Rondando o ego. Sorri. Te amei sonâmbula
Esdrúxula, mas te amei inteira.

Hilda Hilst. Poemas Malditos, Gozosos e Devotos. São Paulo: Globo, 2001. pp. 55-63.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Uma força do Passado



10 de junho de 1962.

Apenas uma ruína, sonho de um arco,
de uma volta romana ou românica,
em um campo onde espuma um sol
cujo calor é calmo como um mar:
aí reduzida, a ruína é sem amor. Uso
e liturgia, agora profundamente extintos,
vivem no seu estilo - e ao sol -
para quem lhe compreenda presente e poesia.
Dê poucos passos e estás na Appia
ou na Tuscolana: aí tudo é vida,
para todos. Ou melhor, é cúmplice
dessa vida quem estilo e história
não conhece. Os seus significados
mudam-se na sórdida paz,
indiferença e violência. Milhares,
milhares de pessoas, arau
de uma modernidade de fogo, ao sol
cujo significado também vigora,
cruzam-se pululando obscuramente
nas calçadas que cegam, contra
a Ina-Case aprofundada no céu.
Eu sou uma força do Passado.
Somente na tradição está o meu amor.
Venho das ruínas, das igrejas,
dos retábulos, dos burgos
abandonados sobre os Apeninos ou Pré-alpes,
onde viveram os irmãos.
Giro pela Tuscolana como um louco,
pela Appia como um cão sem dono.
Ou olho os crepúsculos, as manhãs
em Roma, na Ciociaria, no mundo,
como os primeiros atos da Pós-História,
à qual assisto, com privilégios,
da borda extrema de alguma idade
sepulta. Monstruoso é quem nasceu
das vísceras de uma mulher morta.
E eu, feto adulto, vagueio
mais moderno que todo moderno
procurando irmãos que não existem mais.

Pier Paolo Pasolini. Poesie Mondane. In.: Poesia in forma di rosa. Milano: Garzanti, 2001. pp. 23-24. Ensaio de tradução: Vinícius Nicastro Honesko.

Imagem: série de auto-retratos de Pasolini de 1964-1965. In.: Pier Paolo Pasolini. I Disegni 1941-1975. A cura di Giuseppe Zigaina. Milano: Edizioni di Vanni Scheiwiller, 1978.

quinta-feira, 31 de março de 2011

Gêmeos


A nítida sensação de que uma poesia pode ter a forma de uma rosa era fruto de uma noite cujos sonhos entraram dentro de sonhos. O despertar ainda sonhando, os sentidos ainda impregnados pela fragilidade e volatilidade dos panteões oníricos, toda a discordia concors que era vivida como a lógica causal mais férrea, tudo, absolutamente tudo, também poderia ter sido o sintoma de uma disperata vitalità. E a conexão entre opostos, uma vida angustiada, o fechar dos olhos dentro do sonho para reabri-los ainda sonhando... a vida dos séculos, Pier Paolo, a vida dos séculos. Você que a escutava com todos os sentidos de dentro daquele trem, o trem da vida, o qual gemia maravilhado e resignado com a própria existência; você que sabia que o trem se dava conta de que a vida era um segmento assinalado na própria vida; você que sabia que a vida era clara só no sonho.
Agora acordo (?) e vejo fotografias de flores com fantasmas ao fundo. Eles caminhavam por ali: na foto e também nos sonhos que me perseguiam. Não, não... eram apenas palavras que agora me seguiam, fazendo com que nada fosse definitivo, Ingeborg. E tais fantasmas-palavras, tais sons-imagens insignificantes, eram mortos-calados, eram monolitos que não me comunicavam nada? Não... não... Pier Paolo,
La morte non è
nel non poter comunicare
ma nel non poter più essere compresi
E talvez para mim não compreender o que me era comunicado tivesse sido a porta de ingresso para a ante-sala da palavra, para a minha palavra que agora não era compreendida. Era a desesperada vitalidade que clamava quando da minha entrada no Hades (buscava eu Eurídice? E o signo órfico retorna quando já não mais esperava por ele); talvez, assim como a Anne - do Maurice -, para quem tudo o que via e que sentia era apenas a ruptura que a separava do que via e do que sentia, também para mim as visões e sensações noturnas, por serem aquilo que não gostaria de ver nem de sentir, não passassem de enigmas que acabariam não somente cegando meus olhos, mas fazendo com que eles sentissem uma náusea profunda, com que expulsassem todo tipo de detritos que ali, no sonho, não eram mais que imagens que se montavam a partir de desejos de uma vida agoniada... ah, vitalidade desesperada...
O sonho entrava na vida, as fronteiras do dia e da noite não eram mais nada em relação às vidas que saltitavam e oscilavam em meio à incompreensão dos outros seres, em meio à morte. Mas quem disse que o sim e o não se excluem, Murilo?
As quatro colunas que sobraram do Templo dos Gêmeos, Castor e Pólux, na foto eram os elementos da mortalidade de um e da imortalidade de outro. Tampouco tal diferença fora suficiente para impedir que Zeus os unisse na constelação de Gêmeos, unindo-os assim no céu da imortalidade, unindo o finito ao infinito. As barreiras da vida, no mito, soçobram no sonho dos astros e, a partir de então, os Gêmeos guiam os argonautas... e talvez Pessoa possa ter sentido que viver não era preciso, mas que sim o era navegar justamente ao olhar para o céu. Mas olhando para a foto eu não via meus fantasmas que ali poderiam habitar, eu sonhava o sonho dentro do sonho e não havia luz do dia, nem flores a passear em forma de poema que me tirassem da incompreensão das palavras... vós, palavras! É, mais uma vez, Murilo, quem disse que a morte mata quando se cavalga o mito em pelo?

terça-feira, 29 de março de 2011

Nota liminar sobre o conceito de democracia



Todo discurso sobre o termo "democracia" está hoje falsificado por uma ambiguidade preliminar que condena ao mal entendido aqueles que o empregam. De que se fala quando se fala de democracia? Qual racionalidade, com efeito, esse termo revela? Uma observação um pouco atenta mostra que aqueles que debatem hoje sobre a democracia entendem esse termo tanto como uma forma de constituição do corpo político, como uma técnica de governo. Portanto, o termo remete, ao mesmo tempo, à conceitualização do direito público e àquela da prática administrativa: designa tanto a forma de legitimação do poder quanto as modalidades de seu exercício. Como no discurso político contemporâneo fica evidente que esse termo relaciona-se com muito mais frequência a uma técnica de governo - que, enquanto tal, não tem nada de particularmente tranquilizadora -, compreendemos o mal estar de quem continua a empregá-lo de boa fé no primeiro sentido.
Que o entrelaçamento dessas duas conceitualizações - jurídico-política de um lado, econômico-gestional de outro - tenha raízes profundas e não seja fácil desembaraçá-las pode ser visto de maneira clara no seguinte exemplo. Quando, nos clássicos do pensamento político grego, encontramos a palavra politeia (com frequência utilizada numa discussão sobre as diferentes formas de politeia: monarquia, oligarquia, democracia, assim como suas parekbaseis ou desvios), vemos que os tradutores traduzem essa palavra tanto como "constituição" quanto por "governo". Assim, a passagem de A Constituição de Atenas (cap. XXVII) em que Aristóteles descreve a "demagogia" de Péricles: "démotikóteran synebé genesthai tén politeian" é ao inglês traduzida: "the constitution became still more democratic"; pouco depois, Aristóteles acrescenta que a multidão "apasan tén politeian mallon agein eis hautous", e o trecho é traduzido pelo mesmo tradutor como "brought all the government more into their hands" (é evidente que traduzir como brought all the constitution, como a coerência exigiria, teria sido problemático).
De onde vem essa verdadeira "anfibologia", essa ambiguidade do conceito político fundamental, pela qual ele se apresenta tanto como constituição quanto como governo? Será suficiente assinalar aqui, na história do pensamento político ocidental, duas passagens nas quais essa ambiguidade se manifesta com uma particular evidência. A primeira se encontra na Política (1279a 25 seq.), quando Aristóteles declara sua intenção de contar e de estudar as diferentes formas de constituição (politeiai): "Já que politeia e politeuma significam a mesma coisa e que politeuma é o poder supremo (kyrion) das cidades, é necessário que o poder supremo seja o próprio de um só, de alguns ou do grande número..." As traduções correntes trazem o trecho da seguinte forma: "Já que constituição e governo significam a mesma coisa e que o governo é o poder supremo do Estado [...]." Ainda que uma tradução mais fiel tivesse que conservar a proximidade dos dois termos politeia (a atividade política) e politeuma (a coisa política que daquela atividade resulta), fica claro que a tentativa de Aristóteles para reduzir a anfibologia por meio dessa figura que ele chama kyrion é o problema essencial dessa passagem. Para empregar - não sem forçar um pouco o traçado - uma terminologia moderna, poder constituinte (politeia) e poder constituído (politeuma) aqui são ligados na forma de um poder soberano (kyrion), que aqui aparece como aquilo que mantém juntas as duas faces da política. Mas, por que a política é cindida e em virtude de que o kyrion articula, suturando-a, essa cisão?
A segunda passagem encontra-se em O Contrato Social. No seu curso de 1977-1978, "Segurança, território, população", Foucault já havia mostrado que Rousseau colocava-se o problema de conciliar uma terminologia jurídico-constitucional ("contrato", "vontade geral", "soberania") com uma "arte de governar". Mas, na perspectiva que aqui nos interessa, a distinção e a articulação entre soberania e governo, que está na base do pensamento político de Rousseau, é decisiva. "Eu rogo aos meus leitores", escreve ele no seu artigo sobre a "Economia política", "que distingam bem a economia pública, a respeito da qual falo e que chamo governo, da autoridade suprema que chamo soberania; distinção consistente no fato de que uma tem o direito legislativo [...] enquanto a outra tem apenas a potência executiva." Em O Contrato Social a distinção é reafirmada como articulação entre vontade geral e poder legislativo de um lado, e governo e poder executivo de outro. Com efeito, para Rousseau trata-se de, ao mesmo tempo, distinguir e de entrelaçar esses dois elementos (é por isso que no mesmo momento em que ele enuncia a distinção deve com força negar que ela seja uma divisão do soberano). Como em Aristóteles a soberania, o kyrion, é ao mesmo tempo um dos termos da distinção e aquilo que liga em um nó indissolúvel constituição e governo.
Se hoje assistimos à dominação esmagadora do governo e da economia sobre uma soberania popular que foi progressivamente esvaziada de todo sentido, talvez seja porque as democracias ocidentais pagam agora o preço de uma herança filosófica que assumiram sem benefício de inventário. O mal entendido que consiste em conceber o governo como simples poder executivo é um dos erros mais cheios de consequências na história da política ocidental. Isso fez com que a reflexão política da modernidade vagasse atrás de abstrações vazias como a lei, a vontade geral e a soberania popular, deixando sem resposta o problema, sob qualquer ponto de vista decisivo, do governo e de sua articulação com o soberano. Tentei mostrar em um livro recente que o mistério central da política não é a soberania, mas o governo; não é Deus, mas o anjo; não é o rei, mas o ministro; não é a lei, mas a polícia - ou, de modo mais preciso, a dupla máquina governamental que eles formam e mantêm em movimento.
O sistema político ocidental resulta da ligação de dois elementos heterogêneos, os quais se legitimam e dão um ao outro consistência: uma racionalidade político-jurídica e uma racionalidade econômico-governamental, uma "forma de constituição" e uma "forma de governo". Por que a politeia está presa nessa ambiguidade? O que dá ao soberano (ao kyrion) o poder de assumir e de garantir sua união legítima? Não se trataria de uma ficção destinada a dissimular o fato de que o centro da máquina está vazio e de que não há entre os dois elementos e as duas racionalidades nenhuma articulação possível? E não seria a partir de sua desarticulação que, com efeito, poderia surgir esse ingovernável, que é ao mesmo tempo a fonte e o ponto de fuga de toda política?
É provável que enquanto o pensamento não se decida a enfrentar esse entrelaçamento e sua anfibologia toda discussão sobre a democracia - como forma de constituição e como técnica de governo - corra o risco de cair no palavrório.

Giorgio Agamben. Note liminaire sur le concept de démocratie. In.: Démocratie, dans quel état? Paris: La Fabrique, 2009- pp. 9-13. (Trad.: Vinícius Nicastro Honesko)

Orfeu (II)



na fumaça do meu cachimbo redemoinham
os mares de aqui e de acolá
as peripécias de poemas que nunca escreverei
o perfume das mulheres que não conheci
as reminiscências das milhares de vidas que não tive
a liturgia mambembe do juízo final de uma briga de facas
na bodega borgeana de minha imaginação bêbada

mas elas passam apenas por esta escrivanhinha desgastada
tamboliram minha preguiça, meu ódio à vida de reuniões
com os de lá, os da superfície, os homens opacos dos autos-de-fé
e dos automóveis, dos parques temáticos, dos jornais dominicais

mas é certo que esta opacidade está em mim, em meu platonismo às avessas
habitante deliberado da escuridão e da fumaça de pensamentos agrestes

Volto a olhar todos os dias para Eurídice
e sob meus ombros vejo apenas o chão poeirento deste Hades de apartamento.


Imagem: 1886. Van Gogh Museum, Amsterdam. 

segunda-feira, 28 de março de 2011

A morte heróica entre os gregos (II)


No início da Ilíada, os reis estão reunidos, cada um com seu exército, os "basiléis", e Agamenón, o rei dos reis, "basiléutatos", goza da maior honra no plano social. Agamenón deve entregar sua própria filha ao sacerdote de Apolo. Em sua troca, toma a jovem Briseida, que havia sido concedida a Aquiles como sua parte de honra. Quando se distribui o butim, começa-se a dar a cada um uma parte igual a dos demais; posteriormente, a elite recebe uma parte de honra, um "geras" especial. Briseida representava para Aquiles o sinal que todo o exército grego lhe outorgava para mostrar que ele não era como os outros, mas um homem que podia em si mudar completamente a face da guerra, pois dava-lhe um sentido particular devido a sua coragem, a seu ímpeto. É este "geras" o que Agamenón arrebata de Aquiles. Quando o exército se reúne, forma um círculo, deixando livre um espaço no centro, uma espécie de ágora, onde podem falar todos os reis. Aquiles chega até lá e menospreza Agamenón: "Que direito tinhas de tirá-la de mim? É uma grande ofensa que me fizeste! Não és nada mais do que um covarde. Tú, que te refugias nas últimas fileiras, que não sabe o que é, no corpo a corpo com os inimigos, comprometer a "psyché"'. Se pode ver claramente que nesta cena se opõem, por um lado, as honrarias ligada ao mérito e à virtude particular de um combatente e, por outro, as honrarias ordinárias, sociais. Agamenón é o rei dos reis, mas ao mesmo tempo as honrarias que recebe são incomensuravelmente menores que as de Aquiles. É uma verdadeira inversão de nível social, e Aquiles o faz compreender isso.

Quando, mais tarde, Agamenón tenta se reconciliar com Aquiles, que havia se retirado do combate - contudo, sem ele, o exército aqueu não pode enfrentar os troianos -, o rei envia até ele uma delegação. Esta delegação explica que Agamenón reconhece seus erros: devolve-lhe Briseida, já que não havia tocado nela; oferece-lhe todo tipo de riquezas, benfeitorias, animais, parte de suas terras, e inclusive uma de suas filhas, sem lhe exigir dote. Porém Aquiles recusa tudo isso pois, neste contexto de honra heróica que leva a uma morte heróica, encontra-se sempre frente ao "tudo ou nada". Na vida social existem gradações, contrabalanceia-se, contemporiza-se, consideram-se os assuntos, aqui, em contraposição, a ofensa que lhe foi infligida não pode ser reparada. Aquiles explica que pouco lhe importa as honrarias ordinárias que os gregos a ele tributam, pouco lhe importa todos os presentes que lhe oferecem, pois existem dois tipos de bens: os que se intercambiam, ganham-se ou se perdem, e que podem ser trocados quando perdidos; e os bens essenciais desde a perspectiva dos valores humanos - o "tudo ou nada", novamente - aquilo que, quando se perde, não se recupera jamais, ou seja, a vida, a si mesmo. Unicamente isso, em cada momento decisivo, não é comprável nem intercambiável, apenas isso se perde de maneira definitiva. Eis aqui a honra heróica, que se inscreve em uma categoria diferente da mera honra ordinária.

Quando se joga deste modo o "tudo ou nada", pode-se estar certo de morrer um dia ou outro, porque nenhum homem é imortal, nem mesmo Aquiles. Quem vive sua existência - sua própria pessoa - deste modo, que consiste em escolher colocar tudo em jogo, a si mesmo, a fim de mostrar-se e demonstrar-se, de provar que se é em verdade um homem sem acomodação, sem covardia, é certo que morrerá jovem. E esta morte não é como a dos outros. Assim como há uma honra heróica que não é a honra ordinária, também há uma morte heróica que não é uma morte ordinária. Por quê? Por que o jovem na flor da sua idade e beleza que cai em combate não verá seu corpo se desvanecer e amolecer, aquilo que a idade provoca em todas as criaturas mortais. Assim é a lei do gênero humano: cada um nasce, cresce, converte-se em uma criança, em um jovem, em um adulto, e depois, pouco a pouco, contrariamente ao que se passa entre os deuses, converte-se em um velho fatigado que coxeia e que, por conseguinte, está a ponto de se despedir, e é como se não tivesse vivido. Enquanto que, se este morre no momento em que demonstrou o que pôde fazer na beleza de sua juventude, sua existência escapará da usura do tempo, da mortalidade ordinária. Na Ilíada, no momento em que Heitor, perseguido por Aquiles, vai enfrentar o herói, Príamo, desde o alto das muralhas, roga a seu filho que fuja, que passe a porta de entrada para se refugiar no interior dos muros. Diz-lhe mais ou menos estas palavras: "Para o jovem guerreiro que cai no campo de batalha, tudo é belo, tudo é conveniente, 'panta kalá, pant'epéoiken', mas a morte para um velho como eu, Príamo, se você sucumbe, será horrível". Príamo alude que Heitor ficará coberto de sangue e os cachorros, que em outro tempo ele alimentava nos pátios do palácio, virão devorar seus genitais. Tirteo, em Esparta, retomará a mesma imagem afirmando que, para o jovem que cai na primeira fileira na flor de sua juventude, ao arriscar sua própria vida e sua pessoa, "tudo é formoso, tudo convém", os homens o admiram, as mulheres o veneram e as futuras gerações continuarão admirando-o. Não deixará, por intermédio desta morte - que, se ao menos não a escolheu, aceitou-a - de ser o que era em vida, ou seja, um homem jovem no esplendor de sua força e beleza. Isso é o que se dirá inclusive em seu funeral. Por quê?

Na Grécia do séc. IX (a.C.) não existe ainda uma escrita desenvolvida. Contudo, toda sociedade deve ter raízes, um passado para manter sua identidade. Para os gregos deste período, que não possuíam escritos nem arquivos, quando não existia nenhuma declaração durante um matrimônio ou um nascimento, a memória social estava assegurada por uma pessoa, o "mnemon", aquele que se recorda, que deve armazenar em sua cabeça todo o saber que permita a cada um conhecer sua identidade: quem é seu pai, que são seus avós, e muitos mais, as genealogias, mas também os limites de seu terreno. Ao mesmo tempo, é preciso que esse grupo tenha em comum um certo número de coisas conhecidas, de valores, de imagens do mundo, de concepções de si, de tradições intelectuais e espirituais: são os aedos, os cantores, que possuem o encargo disso. Eles estão inspirados por uma deusa que os gregos chamavam de "Mnemosyne", Memória. A memória está divinizada na medida em que não existem escritos para levar ao registro o que os antropólogos denominam de "saber compartilhado".

Esta memória é o canto dos poetas, a tradição da Ilíada e da Odisséia, dos Cantos Cíprios e inclusive de muitas outras histórias. É o que constitui as raízes do grupo e o que, nos séculos V, IV e também no período helenístico, as crianças da Grécia aprendem de memória e conhecem. Neste sentido, a Ilíada, que para nós é um simples texto, em um momento dado foi este canto tradicional que, de geração em geração, os poetas narravam, repetiam e modificavam a cada vez, retomando o que se lhes havia ensinado e improvisando para um público novo. Tudo isso formava o fundo comum intelectual e espiritual dos gregos, que de certa forma era mais vivo, mais atual que eles próprios. No marco desta civilização grega, que mudou muito desde a época homérica, Aquiles é, mais do que nenhum outro, um personagem sempre presente em cada geração; não há grego, quer seja Platão, Xenofonte ou Alcebíades, que não o tenha a seu lado.

A morte heróica não só proporciona uma honra incomparável, ela também dá conta do paradoxo de uma criatura humana mortal, efêmera, condenada a um ciclo que caracteriza o homem em oposição aos deuses: a passagem em estágios até a morte lamentável. Aquiles escapa de tudo isso. Neste mundo grego não existe a idéia, própria de nossa civilização judeu-cristã, de que em cada um de nós haveria uma parte que seria "nós mesmos" (a interioridade), a alma, o espírito imortal, individualizado e inclusive mais que individualizado, pois finalmente, com a ressurreição da carne, nossos corpos devem voltar e, portanto, estamos condenados a uma imortalidade bem-aventurada. Para os gregos, isso não existe. Pelo contrário, somos um corpo; a alma está composta por sopros inconsistentes e quando morremos, passamos para o Hades, não somos nada.


VERNANT, Jean-Pierre. La traversée des frontières. Entre mythe et politique. Éd. du Seuil, 2004. 
Imagem: COYPEL, Charles-Antoine. Fury of Achilles. 1737.

sábado, 26 de março de 2011

A imagem de Orfeu


Ao som de Pat Martino, Joey Defrancesco e Billy Hart... postagem a dois (Dos subterrâneos e Khôra nos lindes do Desterro):

Senhoras e senhores, não existe para a situação da literatura imagem mais poderosa do que a deste impaciente cantor, Orfeu, ao encontro do dia, atravessando a zona da morte com uma morta quase viva atrás de si. Pode-se afirmar com toda certeza que ele não deixará fatalmente de olhar para trás, e descumprirá a ordem pelo simples fato de que se infiltrar no mundo noturno implica romper com todas as leis do possível. O poeta é aquele que busca o real no impossível mesmo. Por essa razão perde repetidamente o objeto do seu amor por cuja causa empreendeu a viagem ao Hades. Isso é o que nos faz suspeitar também que o poeta e o viajante pelo mundo dos mortos é o tatuado por excelência. Entre seus ombros se inscreve uma experiência da morte que o obriga a cantar eternamente por algo perdido. Com Eurídice nas sombras se realiza uma experiência que segue sendo válida para toda literatura que se exponha. E o será sempre que, em virtude do desejo poético que permanece atrás de si, conduza-a junto a ele até a luz do dia, até o mundo, até a palavra, sempre que ele não se volte apenas para possuí-la, sempre que conquiste aquilo que faz com que os homens, pelo contrário, percam a palavra e sejam seduzidos até submeter-se, ou seja, à morte. Por tudo isso Orfeu se converte na primeira testemunha da poesia, no orador que faz frente à morte e ao silêncio da palavra. Ele fica marcado pelo insuportável nesse lugar totalmente inacessível que com toda probabilidade será visível a todos, com exceção dele mesmo. Não é completamente inexplicável que no seu destino tivesse que se transmitir uma história sobre ele e não um canto. Essa circunstância tem sua importância do ponto de vista poetológico, pois também revela que o testemunho conta mais que a criação. Para nós o que persiste é a tarefa de compreender que a proibição de olhar para trás transmite mais uma vez a impossibilidade de que cada um contemple, entre seus próprios ombros, a si mesmo, ali onde se encontram os signos de fogo das separações irreversíveis. Por isso o poeta não deve fazer imagem nenhuma do objeto do seu desejo, mas o que Orfeu não deve é, ainda pior, o que não poderá e que, no entanto, terá que desejar para encontrar seu consolo. Orfeu tem que perder o que deseja porque simplesmente já o perdeu. Contudo, entre o ter perdido e o novo perder abre-se o espaço para a vida, que corresponde ao ser que respira, fala e deseja. É nesse espaço onde resistimos ao que é demasiadamente real e aprendemos a ser aprendizes do impossível. É esse espaço aquele que abre a poesia expondo-se até o incerto. É por meio dessa exposição que se começa a jogar ao redor do inadmissível. É assim como a imensa claridade da morte pode desembocar na ambiguidade da vida. Do caráter irreconciliável das separações brota a magia de novos laços que acalmam o fatum.
Senhoras e senhores, anunciei no título destas lições uma poética do vir-ao-mundo que ao mesmo tempo deve mostrar como chegamos à linguagem. Temos a impressão de que até o momento pouco se esclareceu a esse respeito. Em relação a mim, ficaria satisfeito se essas sugestões fossem suficientemente atrativas para permitir abordar esse assunto numa próxima ocasião com mais seriedade. Senhoras e senhores, ficaria feliz de lhes apresentar dentro de uma semana algumas reflexões sobre a poética do começar.

Peter Sloterdijk. Venir al mundo, venir al Lenguaje. Lecciones de Frankfurt. Valencia: Pre-Textos, pp. 29-31. Trad. para espanhol: Germán Cano (retradução caseira para o português: Pancho Lechuza com pitacospoéticos de Le Malade)

Imagem: Jan Brueghel "The Elder". Orpheus in the Underworld. 1594. Galleria Palatina, Firenze.