quinta-feira, 31 de março de 2011

Gêmeos


A nítida sensação de que uma poesia pode ter a forma de uma rosa era fruto de uma noite cujos sonhos entraram dentro de sonhos. O despertar ainda sonhando, os sentidos ainda impregnados pela fragilidade e volatilidade dos panteões oníricos, toda a discordia concors que era vivida como a lógica causal mais férrea, tudo, absolutamente tudo, também poderia ter sido o sintoma de uma disperata vitalità. E a conexão entre opostos, uma vida angustiada, o fechar dos olhos dentro do sonho para reabri-los ainda sonhando... a vida dos séculos, Pier Paolo, a vida dos séculos. Você que a escutava com todos os sentidos de dentro daquele trem, o trem da vida, o qual gemia maravilhado e resignado com a própria existência; você que sabia que o trem se dava conta de que a vida era um segmento assinalado na própria vida; você que sabia que a vida era clara só no sonho.
Agora acordo (?) e vejo fotografias de flores com fantasmas ao fundo. Eles caminhavam por ali: na foto e também nos sonhos que me perseguiam. Não, não... eram apenas palavras que agora me seguiam, fazendo com que nada fosse definitivo, Ingeborg. E tais fantasmas-palavras, tais sons-imagens insignificantes, eram mortos-calados, eram monolitos que não me comunicavam nada? Não... não... Pier Paolo,
La morte non è
nel non poter comunicare
ma nel non poter più essere compresi
E talvez para mim não compreender o que me era comunicado tivesse sido a porta de ingresso para a ante-sala da palavra, para a minha palavra que agora não era compreendida. Era a desesperada vitalidade que clamava quando da minha entrada no Hades (buscava eu Eurídice? E o signo órfico retorna quando já não mais esperava por ele); talvez, assim como a Anne - do Maurice -, para quem tudo o que via e que sentia era apenas a ruptura que a separava do que via e do que sentia, também para mim as visões e sensações noturnas, por serem aquilo que não gostaria de ver nem de sentir, não passassem de enigmas que acabariam não somente cegando meus olhos, mas fazendo com que eles sentissem uma náusea profunda, com que expulsassem todo tipo de detritos que ali, no sonho, não eram mais que imagens que se montavam a partir de desejos de uma vida agoniada... ah, vitalidade desesperada...
O sonho entrava na vida, as fronteiras do dia e da noite não eram mais nada em relação às vidas que saltitavam e oscilavam em meio à incompreensão dos outros seres, em meio à morte. Mas quem disse que o sim e o não se excluem, Murilo?
As quatro colunas que sobraram do Templo dos Gêmeos, Castor e Pólux, na foto eram os elementos da mortalidade de um e da imortalidade de outro. Tampouco tal diferença fora suficiente para impedir que Zeus os unisse na constelação de Gêmeos, unindo-os assim no céu da imortalidade, unindo o finito ao infinito. As barreiras da vida, no mito, soçobram no sonho dos astros e, a partir de então, os Gêmeos guiam os argonautas... e talvez Pessoa possa ter sentido que viver não era preciso, mas que sim o era navegar justamente ao olhar para o céu. Mas olhando para a foto eu não via meus fantasmas que ali poderiam habitar, eu sonhava o sonho dentro do sonho e não havia luz do dia, nem flores a passear em forma de poema que me tirassem da incompreensão das palavras... vós, palavras! É, mais uma vez, Murilo, quem disse que a morte mata quando se cavalga o mito em pelo?

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