Aquiles, o ideal de homem heróico.
Não é fácil falar da morte heróica na Grécia. Não sabemos ao certo por que ponta iniciar, já que são muito numerosas. O mais simples seria começar pelo personagem que encarna, aos nossos olhos e também aos olhos dos gregos, o ideal de homem e morte heroicos: Aquiles. Nos relatos que o mencionam, não só na Ilíada mas também nas histórias lendárias que nos foram transmitidas por outras fontes, o dilema se coloca claramente a propósito de uma eleição quase metafísica entre duas formas de vida opostas.
Aquiles é filho de um simples mortal, Peleu, e de uma deusa, Tetis. Zeus e Poseidón queriam desposar Tetis, ou pelo menos unir-se a ela. Quando Prometeu lhes faz saber que o filho de Tetis será mais forte, mais brilhante, mais elevado que seu pai, eles renunciam à deusa. Não desejam que filhos mais poderosos reavivem, em uma nova geração, a guerra entre os deuses. É uma lei de mortalidade que implica que cada geração deve necessariamente ocupar o lugar da precedente, como as ondas do mar. Para evitar serem destronados por seus filhos, os deuses enviam Tetis entre os humanos e a oferecem a Peleu. A deusa não está muito de acordo, e por isso adota todo tipo de formas para escapar desta união até que, finalmente, transforma-se em polvo, em "sepia", pois ao ser capturada lança uma tinta e se torna invisível. Porém Peleu a encurrala em uma captura absolutamente inescapável e tem um filho com ela, Aquiles. Este, com efeito, é mais forte que seu pai, o velho Peleu, e é o mais forte de todo o mundo. É uma sorte de herói maravilhoso, invencível, ainda que igualmente encarne isso que os deuses pretendiam evitar: a lei da sucessão das gerações. Os homens nascem, crescem e morrem, e também Aquiles, em um momento dado, deverá irse para que uma nova geração apareça. Tetis quer conferir a Aquiles a imortalidade. Tomando-o pelo calcanhar submerge o recém-nascido nas águas do Estígia. Se consegue sair desta prova terrorífica - pois o Estígia é, em certa maneira, a própria morte - as partes do corpo que foram submergidas se tornarão imortais. Ele é, portanto, um ser humano que, por sua pessoa, seu passado e sua genealogia, situa-se no cruzamento entre o divino e humano. Apenas uma pequena parte de seu corpo segue sendo mortal: o calcanhar - porque era preciso que Tetis o segurasse de algum lugar - e por aí é que ele perecerá.
Assim, este homem é a imagem mesma do guerreiro e de suas virtudes: não só a coragem, mas também esta forma de moral aristocrática que constitui ao mesmo tempo o pano de fundo da morte heórica, onde um homem é "kalós kagathós", "belo e bom", como se sua qualidade de homem eminente, incomparável, pudesse ser lida em seu corpo, em sua presença, em sua gestualidade, sua marcha, sua maneira de se apresentar. Se um homem como Aquiles aparece em um círculo, é como se um deus estivesse ali. Ele encarna esta espécie de excelência que se manifesta em um brilho luminoso, como a beleza de uma jovem semelhante a uma deusa. De alguma maneira, é como os gregos veem Aquiles: sem nenhuma moral do pecado, da falta ou do dever; existe a idéia que se deve ser uma pessoa de bem, não cair em baixezas, vilezas, dívidas; deve manter-se nesta linha.
Aquiles se expõe frente à eleição entre dois caminhos. Por um lado, uma vida pacífica e doce, uma vida longa, com sua mulher, filhos, seu pai, e logo a morte ao fim do caminho, em seu leito, como sucede a todos os anciãos. Desapareceria no Hades, numa espécie de mundo sombrio de cabeças vestidas de noite, onde nada tem nome nem individalidade, e onde se converteria em uma sombra inconsistente; depois nada, ninguém. Ou pelo contrário, o que os gregos chamavam de vida breve e de bela morte, "kalós thánatos". Não há bela morte se não há vida breve. Isso significa que, no ideal heóico, um homem pode eleger ser sempre e em tudo o melhor, e para prová-lo se colocará continuamente - é a moral guerreira em combate -, sem duvidar, na primeira fileira e jogar cada dia, em cada enfrentamento, sua "psyché", ele mesmo, sua própria vida, tudo. Por que tudo? Esta concepção de uma forma de vida que adere a um sentido de honra, a "timé", resulta também que todas as honras do Estado, as honras estabelecidas, percam seu valor.
Extraído de VERNANT, Jean-Pierre. Atravesar fronteras: entre mito y política. Bs. As: Fondo de Cultura Económica, 2008. Trad. caseira: Jnf. (Continuação do ensaio nas próximas postagens)
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