quarta-feira, 23 de março de 2011

Un petit chat


Revirando minhas coisas em busca de algumas fotocópias antigas, acabei encontrando um gato. É, trata-se de um gato judeu que conheci há cerca de 2 anos. Desde então, tivemos alguns encontros - na verdade, tais encontros foram sempre longe dos nossos lugares habituais, portanto, eram encontros com um gato que, mesmo conhecido, era sempre estranho (coisa do tal Unheimlich que tanto fascinava Freud) - mas há tempos que não o via falando português. Habituado a escuta-lo falar francês - já que as últimas vezes que o vi estava girando por Paris e Bruxelas -, quase não o compreendi em seu português sujo e arrastado. Tirei-o do meio dos livros, acariciei-o a pequena juba e sentei-me com ele ao colo. Ronronava muito e dava-se carinho ao se esfregar veementemente à minha mão direita (coisa que só os felinos domésticos conseguem fazer de maneira perfeita).
Nesse instante, começamos a travar nosso diálogo contumaz o qual, não importasse a língua em que nos falávamos, corria sempre os trilhos dos mesmos assuntos: felicidade, amizade e os percalços da vida. Como ele estava distante de mim há algum tempo (as estantes em que remexia não eram as minhas), tive que lhe contar tudo o que tinha se passado. Lembrei de várias coisas que tinha para lhe dizer e de muitas outras me esqueci. Disse-lhe tudo a respeito das minhas impressões sobre a Espanha, sobre a Holanda (talvez, o meu gato também pudesse ter estado lá, ouvindo alguma banda de Klezmer que tanto lhe agrada), sobre Portugal... Contei-lhe sobre o paradoxo que me veio a mente em Agrigento (claro, disse-lhe que tal indagação já tinha vindo à de Murilo): "Transformar-se ou não, eis o problema". Claro que ele escutava tudo com muita agudeza, e seus pelos roçavam, enquanto isso, as minhas mãos que então tremiam pelo reencontro.
Mas a conversa não parou por aí. Também tive minhas falhas de memória e muita coisa deixei de contar. No entanto, ele parecia compreender tudo, inclusive os meus não-ditos (eram aqueles olhos cor de mel que me inquiriam a dizer: "meu caro, você sabe que eu sei o que você não quer saber..."). Lembrei-me imediatamente de um outro gato, este que, de tão sorrateiro, fora por mim apelidado de rato, ainda que se assemelhasse a um pequeno leão. Era o jogo do bicho caçador com o bicho escroto que quando vem à luz logo foge procurando abrigo em alguma recôndita sombra.
Talvez todo o contraste desses gatos (o que agora estava comigo e o da minha lembrança) fosse um aspecto meu, algo que poderia dizer respeito à minha vitalidade. Jogar entre a claridade das conversas abertas (aquelas que eu mantinha com o gato judeu) e a obscuridade das carícias no gato-rato, com quem tentava desafortunadamente falar (ainda que com este conseguisse manter um relação de cumplicidade extrema... é, talvez seja esse um aspecto da vida sombria: manter-se cúmplice no silêncio). Pensava nos gatos como meus opostos internos, como minhas vontades em contraste: correr para debaixo de um fogão qualquer ou sentar-me à mesa para um conversa na qual até os olhos diziam quase tudo.
E agora escrevo no presente... não sei se há uma possibilidade de fixar-se em qualquer dos pontos. Acho, na verdade, que não há receita para encarar esse jogo de opostos. Penso apenas em entrar no fluxo contínuo, no movimento que se cumpre em mim, em minha existência. É isso: estamos jogados no mundo e os gatos são as carapuças que vez ou outra acabamos por vestir. Tudo é uma questão de jogar com as palavras que ora enchem-se de conteúdo, ora são apelos ao vazio da escuridão dos esconderijos. Entrar na história, entrar em jogo... movimentar-se nas idas e vindas das palavras sempre vazias que estão sempre esperando um ato de reversão, uma leitura em diagonal, que as retire de seus lugares, que as deixe, no entanto, cumprir seus papéis de sabotadoras e enaltecedoras de algo que alguém alguma vez chamou (nomeou) de condição humana.
Talvez o gato judeu sempre estivesse presente, mesmo no momento em que o gato-rato tomava o lugar de destaque e vice-versa; acho que tudo pode ser uma questão de botar palavras na boca; dar nomes aos nossos estados psíquicos, dar nomes aos nossos encontros, dar nomes aos nossos desencontros... talvez a vida distante tenha me dado um nome, mas, como me disse o gato judeu: "mais le temps de nommer une chose, elle a dejà changé, et le nom qu'on lui a donné a dejà fini de la définir avec exactitude, et on se retrouve avec en bouche des mots vides..."

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