Ficaram tão eufóricos com o fim da terceira guerra mundial, que não houve, mas poderia ter havido, que resolveram celebrar à altura.
E saíram por aí, celebrando nos bares. De vez em quando entravam em desacordo. Um dizia que a vitória era de Kennedy, o outro sustentava que o vencedor fora Kruchev.
- Se o objetivo é a paz, e se a paz foi alcançada pela carta do Niquita, comprometendo-se a desmontar as bases de foguetes em Cuba, como é que ele não foi o vencedor? E o efeito moral do gesto? A grandeza? Além do mais, ele venceu-se a si mesmo.
- Tem razão. Uma para o Niquita.
E traçaram uma para o Niquita.
- É, mas estou sendo injusto com o Kennedy. Se ele não tivesse ordenado o bloqueio não havia crise; não havendo crise, não havia o gesto lindo do Niquita. Até parece que estavam combinados. O Kennedy também venceu. Uma para o Kennedy.
E beberam uma para o Kennedy.
- Rapaz! Imagina se eles não tivessem amansado um ao outro, a gente estaria hoje dividida, hem? Você do lado do oriente, eu do ocidente...
- É mesmo. Acabávamos cortando relações, antes que o mundo acabasse.
- Brigando de tapa, quem sabe?
- Mas agora eu estou do lado de você e você está do meu lado.
- Então, para os dois lados.
Beberam para os dois lados, e chegaram à conclusão de que não há vencedores, ou por outra, todos são vencedores nesta guerra de Cuba.
- Mesmo o Fidel? - um duvidou.
- O Fidel estava safado da vida com os russos, que tomaram conta da casa dele antes dos americanos. Agora ficou livre dos russos e dos americanos. Ele também ganhou.
- Pois então uma para o barbado.
Enxugaram uma para o barbado.
Sentiam-se agradecidos a si mesmos, responsáveis pelo entendimento entre as potências. Era como se eles dois fossem as potências em relax. Tinham sofrido muito com a situação, cada um vendo-a com olhos sectários. Agora estavam limpos de sectarismo e dispostos a resolver tudo à mesa do bar.
- Não se fala mais em guerra nuclear.
- Você promete que a Turquia será evacuada?
- Prometo. Mas você desmantela o muro de Berlim.
- Combinado. Voltamos ao statu quo ante.
- Uma para o statu quo ante.
Mas, depois de beber à saúde dessa personagem, verificaram ser impossível determinar que estado era esse. Não se lembravam de como era antes, no tempo em que não havia prevenções, desconfianças, ressentimentos.
- Bem, discute-se isso em outra conferência de cúpula.
- Mas desde já, vamos à desnuclearização - eta, palavrinha difícil - da América Latina.
- Topo. Uma pela desnuclearização.
Beberam à dita.
- E o caso da China com a Índia? Vamos resolver logo?
O outro estava distraído ou já não ouvia bem:
- Uma pelo caso da China com a Índia!
Aí brigaram.
(Carlos Drummond de Andrade. Cadeira de Balanço. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1979. pp. 88-90)
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