sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Seis fragmentos-tese de teoria da modernidade





I.



Tratar, mesmo que simploriamente, de lançar interpretações sobre as configurações e matizes da tradição modernista brasileira é confrontar-se, em certo sentido, com o pré-requisito (quiçá heurístico?) da formação de um entre-lugar – condição (aporética) de possibilidade - para fixar essa análise. Ou melhor, entre-lugares.
Entre especificidades, localismos singulares e contextos de pretensões universalizatórias; entre a modernidade entendida como modernização (na acepção weberiana do termo; técnica, formal, burocrática, imbricada com a trajetória do capitalismo ocidental) - tão hegemônica nas paragens tupiniquins - e facetas polifônicas relacionadas ao conceito, operático ou demoníaco, do moderno em sentido amplo, principalmente no terreno estético (ou inestético
[1]); entre o museu-sarcófago-instituição da memória e a exaustão melancólica da amnésia[2]; entre processos e acontecimentos; entre sollen e sein, e entre ser e devir; entre territorialização e desterritorialização; entre Irineu Funes e Pierre Menard; entre o movimento e a vertigem; entre o moderno e o pós-moderno.
E, mesmo apresentando estes locais, nada os assegura contra os cortes apeleseanos (hosomi
[3]) de novas distinções e, consequentemente, proliferações. Se se distinguem topoi específicos isto é feito apenas para facilitar a análise, nunca estes se apresentarão de maneira peremptória, inabalável, salvo no refúgio generalizado de mitologemas e filosofemas biunívocos que presidiram em grande parte a estruturação da versão monumental de modernidade ocidental (v.g., oikos-pólis; público-privado; cidade-campo; humano-inumano; racional-irracional; falante-vivente; ... ad nauseam). Ficcionalização encarnada, coagulações impeditivas de devires, aqui combatida.
Cortes que convergem, em boa parte de seu fluxo, para lugares ontologicamente indiscerníveis, irredutivelmente híbridos, mestiços... irremediavelmente indecidíveis.


II.



À máquina nacionalista projetada da Europa oitocentista e toda ficção inerente ao princípio político de natividade aplicada nos séculos e séculos de antropogeografização do conceito de Estado-nação (o Volksgeist) - obscuros estilhaços ontológicos de tradição também herdada pelo modernismo monumental brasileiro - resta a tarefa de desativação a partir de uma crítica (constantemente autocrítica
[4]) descompromissada com origens (totalidades) e com identidades. Hibridismo e singularidades quaisquer. A teoria suja e a teoria arremessada na contingência pura.


III.



Um parangolé
[5] modernista. Teoria que assume o fluir da leveza dançante nietzscheana como ponto de chegada e ponto de partida de seu itinerário. Ou melhor, abole os pontos em deslocamentos imprevistos e inauditos, gingando malandramente as hierárquicas intransigências de sujeitos e objetos. Incolmatável vazio aceito. Visual e táctil e anestésica. Dadá é nada. Parangolé é nada.



IV.


Afirmar a pura contingência implica lançar-se frente a frente com um nada a ser nadificado. Fazer novo uso, profanar, o vazio da condição contemporânea. Deslocá-lo do dispositivo do espetáculo hipertrofiado que insiste em capturá-lo.




V.



À teoria da modernidade que procure realmente enfrentar as ambivalências e aporias que o mundo contemporâneo pós-democrático espetacularizado lança-lhe como enigmas, caberá como imperativo inserir-se em novas temporalidades, tornando inoperante a escatologia secularizada do tempo linear-progresivo-homogêneo-vazio (inerte entre o foi e o será, o não mais e o ainda não). Frente ao fim do tempo, restará contrapor o tempo do fim.

VI.



Metáforas do que nos resta. O Bartleby melvilleano e o Ulisses joyceano.

Só então uma potência que tanto pode a potência como a impotência é, então, a potência suprema. Se toda potência é simultaneamente potência de ser e potência de não ser , a passagem ao ato só pode acontecer transportando (Aristóteles diz “salvando”) no ato a própria potência de não ser. Isso significa necessariamente que, se é próprio de todo pianista tocar e não tocar, Glenn Gould é, no entanto, o único que pode não não tocar, e aplicando a sua potência não apenas ao ato, mas a sua própria impotência, toca, por assim dizer, com a sua potência de não tocar. Face à habilidade, que simplesmente nega e abandona a própria potência de não tocar, a mestria conserva e exerce no ato não a sua potência de tocar (é esta a posição da ironia, que afirma a superioridade da potência positiva sobre o ato), mas a de não tocar.
Em De Anima, Aristóteles anunciou sem meios-termos esta teoria, precisamente a propósito do tema supremo da metafísica. Se o pensamento fosse, de fato, apenas potência de pensar este ou aquele inteligível, então – argumenta Aristóteles – ele desapareceria desde logo no ato e ficaria necessariamente inferior ao próprio objeto; mas o pensamento é, na sua essência, potência pura, isto é, também potência de não pensar e, como tal, como intelecto possível ou material é comparado pelo filósofo a uma pequena tábua de escrever na qual nada está escrito (é a célebre imagem que os tradutores latinos nos restituem com a expressão tabula rasa, ainda que, como observavam os antigos comentadores, se devesse falar antes de rasum tabulae, isto é, da camada de cera que reveste a tábua e que o estilete risca.
É graças a esta potência de não pensar que o pensamento pode virar-se para si próprio (para a sua própria potência) e ser, no seu auge, pensamento do pensamento. Neste caso, o que ele pensa, no entanto, não é um objeto, um ser-em-ato, mas essa camada de cera, o rasum tabulae, que não é mais do que sua própria passividade a sua pura potência (de não pensar): na potência que se pensa a si própria, ação e paixão identificam-se e a tábua de escrever escreve-se por si ou, antes, escreve a sua própria passividade.
O ato perfeito da escrita não provém de uma potência de escrever, mas de uma impotência que se vira para si própria e, deste modo, realiza-se a si como ato puro (a que Aristóteles chama de intelecto agente). Por isso, na tradição árabe, o intelecto agente tem a forma de um anjo, cujo nome é Qalam, Penna, e cujo lugar é uma potência imperscrutável.

Bartleby, isto é, um escrivão que não deixa simplesmente de escrever, mas “prefere não”, é a figura extrema desse anjo, que não escreve outra coisa do que sua potência de não escrever.
[6]

Ulisses de Joyce. Leopold Bloom. Um dia de um homem como romance sincopado, frenético, no tamborilar nos limites da linguagem... os átimos, a não durabilidade e toda a narrativa para se imortalizar o fugaz, o comezinho dia de um homem qualquer. Irredutível singularidade. Bloom, apenas. Não estipula sua singularidade em relação a uma propriedade comum, apenas tal qual é
[8]. O dia de um homem qualquer, ser-tal com todos os seus predicados. Amabilidade. Molly. “Porque o amor nunca escolhe uma determinada propriedade do amado (o ser-louro, pequeno, terno, cocho), mas tão pouco prescinde dela em nome de algo insipidamente genérico (o amor universal): ele quer a coisa com todos os seus predicados, o seu ser tal qual é”[9].
Para Agamben, o Amável, a singularidade qualquer, nunca é inteligência de uma qualidade ou essência, ou diríamos, de uma totalidade, apenas uma “inteligência” de uma “inteligibilidade” (que se use tais palavras num sentido lato). A anamnese erótica de Platão, movimento que transforma o objeto não na direção de outro lugar, mas para seu próprio ter-lugar...
Um possível ter-lugar: o sempre-exílio no pensamento, pensamento-do-pensamento.
Contraponto a Menard e Funes: Bartleby.
Contraponto ao exilado - na provação entre o pecado e a redenção
[10] - Ulisses homérico ou dantesco (“prisioneiro gozoso de seus truques lógicos”[11]): o Ulisses qualquer de Joyce. Bloom.



“Tu, enquanto forjavas,
nas cidades do desterro,
naquele desterro que foi
teu detestado e escolhido instrumento,
a arma da tua arte,
construías teus labirintos,
infinitesimais e infinitos,
admiravelmente mesquinhos,
mais populosos que a história.”

Invocação a Joyce. Jorge Luis Borges (“Elogio da Sombra”)



Ilha de Nossa Senhora do Desterro - 1º semestre de 2006







[1] “Por inestética entendo uma relação da filosofia com a arte, que, colocando que arte é, por si mesma, produtora de verdades, não pretende de maneira alguma torná-la, para a filosofia, um objeto seu. Contra a especulação estética, a inestética descreve os efeitos estritamente intrafilosóficos produzidos pela existência independente de algumas obras de arte.” Epígrafe do Pequeno Manual de Inestética. (Tradução de Marina Appenzeller). São Paulo : Estação Liberdade, 2002.[2] “A cada instante, a medida do esquecimento e da ruína, o desperdício ontológico que portamos inscrito em nós mesmos excede largamente a piedade de nossas lembranças e de nossa consciência. Mas este caos informe daquilo que foi esquecido não é inerte nem eficaz – ao contrário, agita em nós com não menos força do que aquela da massa de lembranças conscientes, ainda que de modo diferente. Há uma força e uma operação do esquecido que não podem ser medidas em termos de memória consciente nem acumuladas como saber, mas cuja insistência determina o valor de todo saber e de toda consciência. O que o perdido exige não é ser lembrado e comemorado, mas permanecer em nós e entre nós enquanto esquecido, enquanto perdido – e somente nessa medida, enquanto inesquecível” Agamben, Giorgio. Il tempo che resta. Un commento alla Lettera ai Romani. Torino: Bollati Boringhieri, 2000. p. 24. (tradução de Vinícius Nicastro Honesko). “(...) la melancolía no sería tanto reaccíon regresiva ante la perdida del objeto de amor, sino la capacidad fantasmática de hacer aparecer como perdido um objeto inapropiable. (...) Recubriendo su objeto com los ornamento fúnebres del luto, la melancolía les confiere la fantasmagórica realidad de lo perdido; pero cuanto que ella es el luto por um objeto inapropiable, su estrategia abre um espacio a la existencia de lo irreal y delimita uma escena em la que el yo puede entrar em relación com ello e intentar uma apropriación com la que ninguna posesión podría parangonarse y a la que ninguna pérdida podría poner trampas”. Agamben, Giorgio. Estancias. La palabra y el fantasma en la cultura occidental. (Trad. Tomás Segovia). Pré-textos: Valencia, 2001.p 53. “Cansamo-nos de alguma coisa específica, particular, porém, o indefinido, o nada, nos exaure. L’epuisé provoca a náusea, conjunto de variáveis de uma situação dada que renuncia a todo significado a toda organização ou à hierarquização de metas e projetos, sem, no entanto, lançar-nos na simples indiferença. A exaustão produz a fissura, ou, em outras palavras, a distância, inseparável de si, do puro acontecimento, enquanto é a possibilidade, a chance que, pelo contrário, sustenta o acontecimento específico, ela denega o nada, mas, ao mesmo tempo, abole aquilo a que aspira”. Antelo, Raúl. Transgressão & Modernidade. Ponta Grossa: Ed. UEPG, 2001. p. 266.[3] “HOSOMI (o corte fino) Quer dizer ‘corpo estreito’. Fisicamente, designa a lâmina fina de um instrumento de corte, navalha, gilete, bisturi. Conota ‘figura de talha’, ‘agudez de corte’, resultado profundo obtido com o mínimo de matéria. Para os críticos japoneses, uma qualidade predominante nos haikais de Bashô. ‘Hosomi’: despojanddo até o limite. LEMINSKI, Paulo. Ventos ao vento. Rabiscos em direção a uma estética. In: Ensaios e anseios crípticos. (Organização e seleção Alice Ruiz e Áurea Leminski). Curitiba : Pólo editorial do Paraná : 1997. p. 86.[4] Devemos nos tornar impiedosos censores de nós mesmos, seguindo uma das teses (a décima quarta) sobre arte contemporânea de Badiou. “Convaincu de contrôler l’étendue entière du visible et de l’audible par les lois commerciales de la circulation et les lois démocratiques de la communication, l’Empire ne censure plus rien. S’abandonner à cette autorisation de jouir est ruine de tout art, comme de toute pensée. Nous devons être, impitoyablement, nos propres censeurs”.[5] Referência explícita à criação de Oiticica.[6] AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. (Tradução de Antônio Guerreiro). Lisboa : Editorial presença, 1993. p. 34-35.[8] Idem. p.11[9] Idem. p.12.[10] “(..) Un himno cristiano (el Salve Regina) llama a los hombres exsules filii Evae: en tanto que hijos de Eva, son exiliados in hac lacrimorum valle, y ruegan a la Virgem que les muetre el Salvador post hoc exsilium. Ésta es la recuperación o la substituión de cierto modelo judío del exilio (no el modelo cabalista, sino el modelo que comporta el regreso y la restauración final). Moralmente, el exilio es la prueba compreendida entra la falta ya la redención. Sin duda aquí, como en otras partes, el cristianismo ha helenizado al judaísmo. En el modelo griego, el exilio (si es que hay en verdad uno: quizá solo hay un elemento, un rasgo de su concepto moderno) es siempre el regreso, es el periplo de Ulises.” NANCY, Jean Luc. La existencia exiliada. (tradução de Juan Gabriel López Guix. In: Archipielago, nº 26-27, Barcelona, 1996. p. 36.[11] (...)
Foto Hélio Oiticica, 1964. "Nildo da Mangueira veste o Parangolé".

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