sábado, 6 de outubro de 2007

Vãs são as palavras



Dizia um retórico do passado que sua profissão consistia em "fazer com que as coisas pequenas parecessem grandes e como tal se aceitassem." O que equivale a dizer um sapateiro fazendo sapatos grandes para pés pequenos. Em Esparta tê-lo-iam fustigado por exercer ofício tão mentiroso e enganador. E penso que foi sem espanto que Arquimedes, um de seus reis, ouviu esta resposta de Tucídides, a quem indagava qual o mais forte na luta: Péricles ou ele. "É difícil verificá-lo, porque quando o derrubo ele persuade os espectadores de que não caiu, e ganha." Os que maquilam as mulheres causam menor mal (porquanto pouco se perde com não as ver ao natural) do que os que têm por profissão abusar, não de nossos olhos, mas da nossa inteligência, abastardando e corrompendo a própria essência das coisas.

As repúblicas bem organizadas e administradas não deram muita importância aos oradores. Assim foi em Creta e na Lacedemônia. Aríston diz com sabedoria que a oratória é a ciência de persuadir o povo. Sócrates e Platão a definem como a arte de enganar e adular. E os que se erguem contra esta definição geral, comprovam-na em seus preceitos. Os maometanos proíbem-lhe o ensino às crianças, por inútil. E os atenienses, entre os quais ela fora tão apreciada, ordenaram a supressão de suas partes mais importantes e que mais atuam sobre os sentimentos: o exórdio e a conclusão, ao verificarem quanto lhes era prejudicial.

Trata-se de um instrumento muito adequado a excitar ou acalmar o populacho alvoroçado e que, como a medicina, só se aplica aos Estados enfermos. Naqueles em que o vulgo ou os ignorantes tiveram todo o poder, como em Atenas, Rodes e Roma, e onde a coisa pública sofreu contínua agitação, proliferaram os oradores. Em verdade não se vêem muitos personagens adquirir grande influência nessas repúblicas, sem ajuda da eloqüência. Para Pompeu, César, Crasso, Lúculo, Lêntulo, Metelo, foi ela o principal fator de sua grandeza e de seu poder. Auxiliou-os mais do que a sorte das armas, o que não aconteceria em tempos melhores. L. Volúmnio, falando em público a favor da eleição de A. Fábio e P. Décio, ao consulado, dizia: "São homens que se fizeram na gueraa, homens de ação pouco afeitos às justas oratórias, caracteres como devemos exigir dos que elevamos ao Consulado; os de espírito manhoso, eloqüentes e eruditos, são bons para os cargos que se exercem sem sair de Roma, cargos de pretores, por exemplo, encarregados de aplicar as leis." Foi quando os negócios andavam pior, quando a tempestade das guerras civis abalava a cidade, que a eloqüência floresceu em Roma; assim as ervas daninhas em um campo abandonado ou não roteado ainda crescem com mais vigor. Pode-se concluir daí que os governos dependentes de um monarca têm menos do que os outros necessidade de eloqüência, pois a tolice e a credulidade da maioria, impelindo-a a ser manejada e orientada pelo ouvido ao doce som daquela música, sem que possa pesar nem conhecer a verdade das coisas pela força da razão, não se encontram tão facilmente em um só homem, o qual é possível assegurar contra os efeitos de tal veneno, mediante uma boa educação e bons conselhos. Nem a Macedônia nem a Pérsia tiveram oradores famosos.

Uma palavra acerca de um italiano com o qual acabo de me entreter e que serviu junto ao falecido Cardeal Caraffa na qualidade de mestre de hotel, cargo que exerceu até a morte do prelado. Falamos de seu cargo e, a respeito da ciência gastronômica, deu-me ele verdadeira preleção com gravidade e atitude de professor como se desenvolvesse um ponto da teologia. Enumerou-me as diversas espécies de apetites: o que se tem em jejum; os que se experimentam depois do e terceiro pratos; os meios de os satisfazer simplesmente ou de os excitar; a técnica dos molhos, a princípio de um modo geral e em seguida pormenorizadamente, entrando na minúcia dos ingredientes e de seus efeitos; a variedade de saladas segundo a estação, as que devem ser servidas cozidas e as que devem ser servidas frias, a maneira de as apresentar agradavelmente. Entrou depois em considerações acerca da ordem com que convém servir os pratos: "pois não é coisa de pouco saber como cortar uma lebre ou trinchar um frango." E tudo isso ornamentado de belas palavras como as que se usam para falar de um governo, de um império, o que me lembrou este trecho de Terêncio: "Salgado demais! queimando demais! insosso! está bom! repita isso outra vez! Dou-lhes meus melhores conselhos, de acordo com o pouco que sei. Finalmente insisto, Demea, para que tenham por espelho sua baixela. E ensino-lhes tudo." Observe-se que os próprios gregos elogiaram, e muito, o banquete que lhes ofereceu Paulo Emílio de volta da Macedônia. Mas não me ocupo aqui de fatos e sim das palavras que se usam para os relatar.

Não sei se outros sentem o que sinto, mas quando ouço nossos arquitetos lançar estas palavras pretensiosas: pilares, arquitraves, cornijas, ordem coríntia ou ordem dórica, e outras de seu jargão, não posso impedir-me de pensar imediatamente no palácio de Apolídon e, por comparação, o que citam com tanta ênfase não me parece muito superior às mesquinhas peças da porta de minha cozinha. Quando ouvis falar de metonímia, metáfora, alegoria e outras expressões da gramática não vos parece que sejam locuções de uma língua rara e peregrina? Pois se aplicam muito simplesmente às formas de linguagem que vossa criada de quarto emprega na sua tagarelice. É erro semelhante aplicar aos cargos de nosso Estado político os pomposos títulos que usavam os romanos, pois não há nenhuma relação nem quanto às funções, nem no que concerne à autoridade e ao poder. E é erro igualmente, que nos censurará a posteridade, atribuir a quem bem entendemos - e não são dignos deles - esses gloriosos cognomes com que a antiguidade honrou um ou dois personagens apenas em sua longa seqüência de séculos. Platão foi chamado "divino" por universal consenso e sem que ninguém pensasse em contestar-lhe o título, e eis que os italianos, que no entanto se vangloriam, com alguma razão, de ter o espírito mais vivo e o juízo mais equilibrado do que os demais povos, acabam de gratificar o Aretino com igual apelito, esse Aretino que, salvo pelo falar empolado, marchetado de saídas em verdade espirituosas, porém demasiado requintadas e rebuscadas, nada tem a meu ver, afora a eloqüência, que o coloque acima dos autores comuns deste século e que o aproxime, ainda que de longe, daquele que os antigos divinizaram. Quanto ao epíteto "grande" a quantos princípes não concederam, que em nada ultrapassam os outros?


(MONTAIGNE. Ensaios. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984. pp. 144-145. Tradução: Sérgio Milliet)

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