Caminhava e via que acabara de cair na lente direita de seus óculos uma gota de chuva. Aquele ponto parecia que lhe entrava corpo adentro. Parecia que o órgão da visão cedia diante de qualquer pressão que sobre ele era feita, e isso o irritava. Não limpou imediatamente, como de costume, mas deixou a gotícula ali, como um espinho na carne. Continuou caminhando com um ponto que desfocava sua vista. Deixou que um pensamento lhe viesse à mente (porque às vezes é assim: um impedimento que livra uma passagem para refletir): não poderia ser o fora de foco um lampejo para novos focos? E, enquanto passava diante do hospital ortopédico (havia fraturado seu passeio?), lembrou-se da noite anterior.
Tinha ido assistir a um concerto para cello no oratório de Santa Cecília. Logo ao entrar na sala, percebera à esquerda o afresco que representava a decapitação de Valeriano, marido da santa que dava nome àquele lugar e com o qual ela, segundo contam, nunca manteve relações carnais em devoção eterna ao Cristo. Notou como a espada do algoz estava meio apagada e pensou que fosse obra do tempo. No entanto, veio depois a saber, ao conversar com um dos agostinianos, que segundo a tradição a espada não conseguira cortar o pescoço da santa pois ela havia respeitado o pacto com o cristo ao não se entregar a nenhuma mão profana. E talvez essa fosse a chave de leitura daquela imagem.
A noite era dedicada às composições de Bach, Boccherini, Lutoslawski, Ligeti e Prokofiev. Depois de uma bela sonata de Bach, executada por dois jovens músicos, um outro violoncelista, também muito jovem, começou a tocar umas variações de Lutoslawski. Ele não entendia de música contemporânea, mas aos primeiros sons agoniantes daquilo que parecia uma agressão ao instrumento, sentiu uma força exterior que lhe jogava para dentro de si. O jovem músico tocava apaixonado, com suspiros que podiam ser escutados por todos naquele pequeno oratório. A música soava abrupta, fragmentada, doentia. Havia um corte nítido nas sensações dos presentes. Depois de um agradabilíssimo bem estar provocado pela sonata de Bach, uma espada descia sobre a cabeça de todos ali. Ele imediatamente se virou para ver o afresco da decaptação e sentiu-se um pouco desconsertado. Era um som que o tirava da atmosfera que há pouco estava em completa sintonia: Bach, imagens do flagelo de uma santa, afrescos, uma crucificação de Francesco "il Francia" no presbitério. A aura de sacralidade tinha caído, ao menos para ele, que, agitado, entrou num turbilhão de pensamentos. Estava desfocado...
Mas agora era a gota d'água que lhe desfocava a visão das ruas, dos pórticos, da gente que espaçosamente se movia. Era um outro momento de dispersão interna, de devaneio em pensamentos, em agonias, em desejos... Um reencontro próximo com próximos, um desencontro distante na saudade, uma despedida estranha de prazer e desprazer, um ocaso de sentimentos, um desabrochar de sentimentos, um suspirar afobado nos jardins da rainha Margheritta, um corvo que com seus gritos desafinados lhe assustava de noite, uma catedral gótica que às vezes lhe roubava os pensamentos, uns lábios rachados pelo frio exagerado, outros lábios carnosos com um sorriso encantado, um desatino que parecia não ter fim... A espada que se apagara no instante mesmo em que iria decapitar Cecília não tinha se apagado para ele, pois entregara-se à profanação, aos delírios impuros da sua memória. Agora era como se o desfecho para a noite estivesse no golpe da espada luminosa do seu tão particular algoz que, atento aos chamados da hora, corta a carne já tão dolorida de sua vítima.
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