"A faculdade de iludir-nos de que a realidade de hoje seja a única verdadeira, se por um lado nos sustém, por outro nos lança num vazio sem fim, porque a realidade de hoje é destinada a ser descoberta ilusão amanhã. E a vida não termina. Não pode terminar. Se amanhã termina, está terminada." Estou sentado diante da TV com um jovem senhor no alto de seus quase 86 anos muito vívidos e fascinantes. Conversamos, rimos, olhamos nos olhos um do outro, falamos errado - ao modo caipira -, dançamos na sincronia de risos cúmplices. A mentira das nossas conversas representam a verdade de uma relação constituída desde meu nascimento: "Foi um átimo, mas a eternidade. Sentimo-nos dentro de todo o desânimo das necessidades cegas, das coisas que não podem ser mudadas: a prisão do tempo; o nascer agora e não antes e não depois; o nome e o corpo que nos é dado; a cadeia das causas; o sémen lançado por aquele homem: meu pai sem querer fazê-lo; o meu vir ao mundo, a partir daquele sémen; involuntário fruto daquele homem; ligado àquele ramo; expresso por aquelas raízes." Estava iniciada minha vida; era a flecha desregrada que teria feito Zenão criar um outro tipo de paradoxo.
A realidade das mentiras de ontem, da verdade eterna do átimo do meu nascimento e a mescla que ambas cumprem no meu presente. A vontade irrefreável de rir, de sentir a história mais estapafúrdia como a pura verdade do ser, do nosso ser-em-comum. Os risos se alongam, o perfume do café vem da cozinha para abrilhantar ainda mais a falsidade de todas as histórias (que em certa medida se sustentaram sobre o peso efêmero da fumaça de café torrado que na vida do tal senhor foi mais que constante), o barulho da TV confunde minha cabeça e as histórias do Pirandello fazem-me pensar a respeito da minha vontade de tê-la companheira. Duchamp encarnava Rrose Sélavy e deixava Man Ray fotografá-lo. A série que brinda a vida, brinda também o amor. E o sentimento, que não mente mas também joga a partida da ilusão, não me deixa calar. A cada frase que cria uma história, história esta que se difere nas infinitas vezes que é contada por aquele senhor, surge uma verdade efêmera e eterna: a verdade de um amor que se cruza para além das fronteiras do dito real e do dito imaginário. Eis talvez a fonte dessa verborragia que falseia e autentica meus sentimentos. Escrevo um texto no momento mesmo em que meus sentimentos estão à flor da pele: quero a gentileza dos verbos errados, das preposições trocadas, das palavras inventadas que o senhor fala e com as quais elabora mirabolantes histórias de caronas fantasmagóricas, de lobisomens comedores de porcos, de viagens a grutas santificadas, de geadas devastadoras de amores e sonhos; quero também agora um aceno d'eros, um sopro miúdo de miúdos pulmões de quem se deita à minha direita.
As rosquinhas de pinga são um pileque de saudades pois as mãos que sempre as fizeram agora não mais as podem fazer; o café não ecoa só em aromas desta cozinha, mas dos momentos em que cadeiras na varanda formavam um círculo aventuroso de risos e mentiras de outros tempos, dos instantes em que uma cafeteira italiana e um só par de pequenas xícaras delicadamente arrumadas sobre um jogo americano eram um elo entre nossos sorrisos... Não sei das verdades da vida, não estou certo do jogo do futuro, não sei, não sei... Talvez a realidade de hoje seja mesmo amanhã uma ilusão, mas o vazio sem fim é hoje e é amanhã e não há nada para preenchê-lo. Talvez Rrose possa ser aquela que lance sempre mais perguntas não para nos tirar do vazio, mas para nos deixar a bailar por ele, como num salão onde eu possa novamente convidá-la para mais uma dança.
Deito minha cabeça numa daquelas almofadas cuidadosamente dispostas nas novas poltronas que adornam a sala. Não há como segurar o pensamento pois não somos nós a pensá-lo, mas ele a nos pensar; e Rrose brinda a vida, e eu novamente sinto um vazio no peito, e a cozinha explode em risadas, e Eros me chama do outro lado da tempestade que agora começou, escureceu o dia e se alonga, alonga, alonga...
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