Falando sobre Esposende, em Portugal, Murilo Mendes diz que queria ter tirado uma foto com a vista geral da cidade, mas que num ato falho havia esquecido a Kodak. Durante um devaneio sobre o que teria sido a foto e uma alucinação sobre a espera divina pelo homem, Murilo, no jogo de exame das palavras que lhe era peculiar, dá-se conta de que a foto falhada e o tal devaneio sobre a espera de Deus em meio ao qual escreve são frutos do princípio de movimento da palavra Esposende. Esposende é encabeçada pelo es-quecimento, este que pressupõe a memória, que por sua vez pressupõe o tempo, o qual pode ser subvertido pela imaginação.
Saindo da igreja de San Apollinario in Classe vinha-me à mente uma constelação de tempos nos quais tentava me enfiar à força. Aqueles mosaicos, as cores, a estrutura da igreja que acabara de ver já eram memória. A história da conquista de Odoacro e o fim do Império Romano do Ocidente, Teodorico e o apoio de Bizâncio para a derrubada de Odoacro, toda a arte paleocristã de caráter oriental que acabara de ver, tudo parecia, como para Murilo, uma vista geral não retratada ainda que, ao contrário do mineiro, eu tivesse feito várias fotos. Talvez tenha sido essa a sensação de uma incapacidade minha de estar presente no presente e, ao mesmo tempo, conseguir sentir o peso do passado, de como aquilo tudo atravessou os tempos. Mas do que estava me esquecendo naqueles momentos? Qual era il buco que, no ônibus de volta para Ravenna, proporcionava naquele instante a memória?
Pensava também no meu presente que estava em casa: um barolo que havia me dado como presente. Estava já como que antecipando o futuro do meu presente, como que sentindo o que seria o sabor daquele vinho que agora abro. Meu presente foi aberto e já o sinto na boca, mas ainda estou no ônibus pensando no buraco da minha memória, no meu esquecimento, no meu presente. Deixo o cálice (não o afaste de mim, ó Pai!) e chego em San Apollinario Nuovo. Mais mosaicos e a bela contraposição dos santos: mulheres do lado direito do altar, homens do lado esquerdo. Mas por que os reis magos estão no lado das mulheres? Talvez porque oferecem seus presentes ao menino Jesus que está no colo de Maria. O dia está gelado e a igreja é fria. Tento ver alguns detalhes, mas o mais curioso deles estava no mosaico central do Battistero Neoniano, para o qual a minha memória acaba de me levar. Trata-se da cena do batismo do Cristo no Jordão, na qual o sexo do messias se insinua entre as águas. Acho que não me lembro de ter visto alguma outra imagem em que o Cristo apareça completamente nu. Para mim foi como uma descoberta... Mas, absorto, nem a descoberta do sexo do cristo conseguia fazer-me esquecer a pergunta: o que tinha esquecido? O que neste dia tinha perdido, falhado? Era uma traquinagem dos meus pensamentos não me deixar esquecer a minha percepção de que tinha esquecido algo...
Mergulho no meu presente, que é vermelho e delicioso, mas no meu presente pareço esquecer-me e me perco na homografia. Que presente? O que faltava? O que falhava? Talvez o meu dia tenha sido de muita conversa a sós. Mas por que não tentar falar com os espectros daqueles outros tempos? O mausoléu que Teodorico mandara construir para guardar seu corpo morto está aí, à minha frente, com seu jeito de espaçonave primitiva. Talvez eu tenha tentado conversar com ele; talvez ele tenha tentado me falar algumas coisas, mas esqueci-me de lhe dar ouvidos; talvez a conversa poderia ter sido sobre o presente, ou sobre os presentes, o meu e o dele; talvez ele pudesse ter me contado como com as próprias mãos matou Odoacro naquele banquete; talvez ele, como cristão ariano que era, também poderia ter me falado das suas impressões sobre a arte bizantina e das suas desconfianças em relação à trindade... mas talvez não fosse com ele que eu gostaria de falar.
Tomo agora o meu barolo, que desde 2004 amadurece na garrafa, e vejo que a memória pode ser como uma pílula que desce ao fundo do cálice com o tinto envelhecido. Mergulha e torna-se mais ou menos opaca, mais ou menos feliz, mais ou menos viva. Depois de olhar um dia todo para o oriente, abro de novo as Janelas Verdes e revejo Murilo Mendes no ponto mais ocidental da Europa, Cabo Carvoeiro. Pode ser que ele estivesse olhando para o lado oposto ao que eu olhara hoje, mas parece que ele percebe minha presença e minha angústia na dor do esquecimento e da memória; e é de lá, num ato de amizade, que me fala:
"Tudo é terrível. Tudo é espantalho, espantável. Tudo ameaça precipitar tudo e todos. Tudo consegue retornar ao princípio e ao fim. Tudo é político, elíptico, oblíquo, ambíguo. Tudo é marítimo, árido, rochoso, ventoso. Tudo é tangente ao labirinto da sensação e da consciência. Tudo é desagradável. Tudo é futuro ou pré-histórico."
Nenhum comentário:
Postar um comentário