"Todas as coisas se encontram em esboço / Tudo vive em transformação...". É assim que o poeta das metamorfoses pensa a vida. Nada é acabado, tudo é porvir, ainda que vivamos de restos de um futuro anterior (esse terá sido que não cansa de abalar as estruturas da eternidade), isto é, nesse tempo composto - e, no caso, penso que o resto é o particípio passado que acompanha o futuro. Consternado pelas intromissões da angústia em qualquer tipo de entendimento, não resta senão a dura constatação de saber-se condenado à existência. O tempo, a transformação, o ver as cores menos coloridas, a descida ao Hades da horas, o correr desenfreado da flecha para o alvo que decreta a finitude, são os aspectos de um esboço que, como artífices de nossas vidas, devemos apagar e reconfigurar, reapagar e configurar. Mas será que se trata de uma questão de apagamento e figuração? Engraçado como o com-figurar, o fazer com a figura, pode ser também a mensagem da morte tecida em linhas bordadas nas nossas vestimentas corporais que amarelam desde o nosso nascimento. Figuren, figura, é como os SS chamavam os judeus nos campos de concentração e extermínio (meras formas); e talvez no meu fim de tarde saturnino pense no com-figurar como, justamente, o modo contemporâneo (esse do ego eimi por excelência; do ego que basta por si só e para si só) de com-pôr relações seja justamente: como figuras - e, se lembrarmos do Typos grego, podemos inclusive dizer: fazendo tipo (talvez o que mais me enraiveça). Talvez mais um delírio, mas a impossibilidade das relações parece-me patente. Mas, talvez, eu possa tentar pensar uma síntese - e, claro, synthesis quer dizer com-posição, o outro modo de figurar -, uma outra tentativa de configuração de nossas vidas. E, talvez, esta não seja mais que uma simpatia com o outro. Ora, não é a simpatia nada além de com-paixão (syn-pathos); um outro jeito de configurar os esboços sem a empáfia do fazer tipo, do fazer como se pudéssemos terminar o desenho de nossas vidas. Simpatia, um deixar-se levar ao encontro do outro, um encontro incabado e sempre em movimento. Tal como o lápis imaginário que tece estas linhas, rasurando umas e fixando outras (um esboço), o movimento simpático é como um entregar-se justamente à decrepitude do tempo da condenação, já que a condenação é para todos. Não há inocentes vivos: existimos na condenação da existência, ou ainda, somos culpados. No encontro simpático há um saber-se desesperançado e, por isso, com companheiros de queda, com paixões amigas, com outros, uma vez que só os que fazem tipo crêem-se imagens achiropitas, imagens da eternidade, portanto, não esboços inabacabados, mas quadros intocáveis, incomunicáveis, sem paixão. Talvez o fazer-se em comum não seja nada mais do que um gesto de simpatia...
Imagem: Tiziano Vecellio. Caim e Abel. 1542-44. Santa Maria della Salute, Venezia.
Um comentário:
Talvez, talvez.
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