segunda-feira, 13 de maio de 2013

Um adeus


Ao C.D., um adeus.

"Les yeux seuls sont encore capables de pousser un cri"
René Char


Borges certa vez escreveu que dizemos adeus porque temos, de algum modo, ciência de nossa imortalidade. Mas, afinal, toda saudação (salvus) é também a remissão a um salvo, a um salvado, a um indemne, a um são. O adeus que dizemos àqueles que se vão para nunca mais, entretanto, não é uma elevação de esperança. Não há reencontro, e nossa imortalidade não é senão a marca que carregamos, nas nossas falas (na nossa linguagem), daquele de quem nos despedimos. A morte, essa interrupção (que, sempre, é abrupta) da exuberância a que chamamos viver, só pôde a nós, seres que falam, ser conhecida pela linguagem (e, de certo modo, é a insígnia da "necessidade" que o deus judaico-cristão tinha de sua criação, o homem: nomear a criação - Gêneses, 2:19). O que é a linguagem senão nosso modo de lidar com a morte? Vivemos, pois, em constante luta com nossa finitude.
Algum longínquo ancestral nosso conseguiu, num momento que ignoramos, dominar a habilidade de lidar com o fogo e, queiramos ou não, passou a perceber a própria sombra refletida na parede de alguma caverna e, assim, começou a "refletir sobre sua existência". A partir disso, não restava mais a esses bichos que então aprenderam a ver a si mesmos como um outro (a ter consciência, e, de tal modo, certa dimensão da linguagem) nenhuma escapatória à morte. Nós - sim, esses bichos são o que chamamos nós (e uma comunidade assim, anacrônica, é inconfessável) - passamos a saber que nossa imagem que se reflete na parede dura pouco, e nada impedirá que, um dia, ela se apague para sempre.
Hoje, sabemos que quando entramos nesta vida falaremos de si mesmos e dos outros, partilharemos nossa existência com os outros próximos justamente nas representações que conseguimos fazer com a linguagem. Sabemos, portanto, que a linguagem que nos dá consciência da morte é a mesma que nos coloca no jogo da vida, da partilha das "experiências" e, em alguma medida, das possibilidades de construir um mundo. Assim passamos nossas vidas; assim nos entregamos, dia a dia, às perdas do vir a ser que o velho Anaximandro dizia, de certo modo, ser a nossa condenação.
Mas a quê estamos condenados? Nós, homens, estamos condenados não apenas à morte - como todos os outros seres viventes -, mas também à consciência dessa interrupção da exuberância chamada vida. Isso é inevitável; é um desses intransponíveis da vida (ou melhor, estamos sempre em luta com o anjo da morte que impiedosa e diariamente passa por nossas portas, estas que esquecemos de marcar com o sangue do cordeiro). E assim passamos a vida - a efêmera vida - em eterna despedida. Vivemos e dizemos adeus quase que incessantemente, quase que de forma natural. Mas, para nós, homens, não há uma simples naturalidade nesses gestos. O mundo, a toda vez que alguém morre, acaba. Aquilo que a presença daquele que agora é ausente carregava, já não há mais. O mundo acaba, definitivamente.
Ainda nos resta, entretanto, nossa ciência da morte (e da tal imortalidade lembrada por Borges), ainda nos resta a luta contra e, ao mesmo tempo, com o anjo da morte; ainda nos restam os sentidos construídos e por construir que aquele mundo que findou nos deixa como marca. Ou, para dizer com Jean-Luc Nancy, "digamos simplesmente que sem supor Deus nem salvação, jamais nos falta, mortos ou vivos, uma língua para eterna e imortalmente saudarmos um ao outro, uns aos outros. Tal saudação, sem nos salvar, ao menos nos toca e, ao nos tocar, suscita essa turbação estranha de atravessar a vida para nada - mas não exatamente em pura perda." 

Imagem: Jonas Bendiksen. Negociantes de sucata esperando por queda de satélite, Cazaquistão.

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