Para minha destinatária impossível.
Querida, por trás de cada desenho esconde-se a mão, o sopro de seus ágeis movimentos e o segredo arredio dos olhos que acompanham as linhas no papel. E o mundo se torna um erro nesses traços. Erro que não erro, mas que me leva adiante, querida, a um mar sem céu e sem ondas onde um dia erramos o lugar de nosso impossível encontro. Há um movimento também nas minhas mãos, mas meus olhos se escondem do que por elas, tão arredias, é gravado. O que era uma bússola a guiar meus sonhos, hoje é apenas uma esfera vazia, tal qual meus olhos perdidos em devaneios nesse mar sem ondas. Talvez aqui espere pela próxima lufada de vento, talvez aqui em mim sejam despertas - por não sei qual deus das águas - novas palavras com as quais desenhar um novo mundo, no qual não mais volte a perceber sua impossibilidade. Mas tudo isso são conjecturas, querida, como a vida que há pouco dava adeus ao poeta que cantava passarinhos. Não digo que este dia da despedida já chegou, ainda que o deus desconhecido das águas desde há tempos me fala que esse dia já passou (e desconfio pois o deus e o dia são a mesma coisa, são a luz que sobra em meio às sombras do uni-verso). Como dizer a você que já não há tempo para tudo, que não há tempo para cada coisa? Como dizer que o Eclesiastes estava completamente equivocado? Esta carta, escrita tal como as milhares de cartas dos marujos dos séculos, só diz que o mar ainda é grande, querida, e que talvez eu não consiga me livrar da falta de ventos e, sem eles, jamais encontre em você qualquer possibilidade. E cada desenho se faz mais incompreensível, e nenhum sopro de mãos parece dar conta das linhas, e todos os olhos carregam olhares vazios. Por que insisto em lhe dizer? Por que uma carta nova me surge a cada vez que mergulho a mão neste mar sem ondas? Não penso respostas e, tão logo tomo em mãos o papel que logo será seu, volto a errar o velho mundo, um velho mundo, o meu velho mundo, o único em que ainda posso traçar, em erro, um destino que jamais poderá cruzar com o seu...
Do seu remetente impossível.
Imagem: Johannes Vermeer. O astrônomo (detalhe). 1668. Museu do Louvre, Paris.
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