sábado, 27 de agosto de 2011

Delírio saturnino


Uma vez ajudei a criar um corpo. Era algo que daria inveja a Mary Shelley. Se ela pudesse ver minha criação (que tinha sido em conjunto, é claro... nem mesmo o deus judaico-cristão criou algo sozinho: "Façamos o homem à nossa imagem...") teria ficado surpresa com o corpo sem órgãos que havia (havíamos) criado. A morte tinha trazido, em forma de pedaços, os elementos mais vitais para a construção daquele espectro que me perseguiria desde a sua criação. A morte, a coisa da morte, a morte. Os suicidas são frágeis espectros da vida para quem a morte parece ser a mais pura concretude. Ingênuos - não inocentes - pensam que a beatitude está em "not to be", como se a vida fosse um "to be". Esquecem-se que "to be or not to be" é apenas uma questão principesca, não afeita às regularidades da vida massificada dos nossos dias.
Lembro das minhas lições de hebraico. Língua sorrateira em que o verbo "ser" esconde-se no presente. "Eu sou", a frase judaico-cristã por excelência, não existe. É tão somente "Ani", "eu". Presente do indicativo para o verbo ser em hebraico é como os pedaços de corpo com os quais montei (montamos) meu (nosso) espectro. A morte, a coisa da morte. O poetinha mineiro Murilo Mendes certa vez, mesmo com seu catolicismo viciado, quis dizer coisas sobre a coisa da morte. E o disse justamente na Parábola: "Coisas, e a morte que existe nelas, / Experiência de desconsolo e de fatalidade / Para as pálpebras que voltaram do amanhã: / Coisas do cristal e do pêssego, / Vacilações da onda fria do veludo; / Coisas sem ângulos e sem vértice / Que no mesmo dia nascem e morrem". Informe, sem ângulo e sem vértice era o corpo por mim (por nós) criado. Sem cantos, sem encantos, o cadáver vivo era agora um ser: "To be", gritava a morte. Em tudo já estava gravado o "not to be", no entanto. Ingenuidade do criador diante do seu criado.
Tudo nada significa. É como se o cadáver vivo por mim criado (por nós criado) pudesse dizer respeito às coisas que são suas sem que estas digam respeito às coisas que são minhas (são nossas). A coisa, as coisas, são sempre artefatos da morte. Sonhamos nossa própria inexistência, algo que não podemos experienciar, algo que é sempre um lugar "coisal", um algo e ao mesmo tempo nada, diria Furio Jesi. A vida do cadáver por mim (por nós) elevado dos mortos falava sobre inquietudes de outrem, sobre enigmas da existência (e, se existimos, somos? Pobres metafísicos...), sobre as demandas de um estar. Não, não! "Ani", e basta! Desde os princípios, linguisticamente, o hebraico (que não falamos) é propício para seu intérprete (seu interlocutor) austro-húngaro (aquele que queria todo homem deitado num divã). Ego, ego, ego... Lembro-me de quando ouvi essa tríplice afirmação (que para mim só poderia ecoar como levedos da trindade, como - o que não entenderás - pungente afirmativa crédula num socorro metafísico, como se as maldições três vezes repetidas ainda fossem válidas) e da minha (da nossa?) surpresa. Era como se o cadáver vivo, que ali jazia, à nossa (?) frente, começasse a nos oferecer de volta as partes com as quais o havíamos (?) montado, como se quisesse voltar à morte (da qual, aliás, talvez nunca deveríamos tê-lo tirado).
É curioso como esse repique de vida e morte, de suicídio e ressurreição, aparece num instante em que sinto (sentimos?) quase que plenamente a sensação de finitude. Loucura minha? Talvez nossa? Não sei, não sei... talvez "to be or not to be" seja sempre a questão; talvez, se é que endereço meu texto para além deste devaneio que sou eu mesmo ("ani"?), "sejamos" ou "estejamos" num lapso da existência, justamente num daqueles instantes em que o "or" transforma-se em "and", num daqueles lapsos da grande mente divina em que a biblioteca de nossas existências (?) desmancha-se num grande fogo, em que possível e impossível não sejam mais do que opções e no qual amar possa ser um verbo intransitivo...

Imagem: Max Ernst. O beijo. 1927. Peggy Guggenheim Collection, Venezia.

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