sábado, 6 de agosto de 2011

Em disagio



Sobem-me as águas. Sobem-te as fúrias
Fartas me sobem dor e palavras.
De vidro, nozes, de vinhas, me sobem dores
Tão tardas, tão carecentes.

Por que te fazes antigo, se nunca te demoraste
Na terra que preparei, nem nas calçadas
Da casa? Me vês e me pensas caça?
Ai, não. Não me pensas. Eu sim, nas noites

Que caminhadas. Que sangramento de passos.
Que cegueira pretendendo
Seguir teu próprio cansaço. Olha-me a mim.
Antes que eu morra de águas, aguada do que inventei.
Hilda Hilst.

In vino veritas

Eras tu a correr em meio ao nada, Deméter?! Por que o desespero?! Era a imagem de Perséfone que tu, mãe, não conseguias esquecer? Era a procura demasiadamente dolorosa?! Imagino que a noite tenha sido longa e que a vida de deusa seja obscura, ao ponto de os eleusinos ritualizarem a busca por Perséfone, ao ponto de os iniciados nos mistérios de tua filha terem sido motivo de chacota do tal Clemente de Alexandria (ah!, estes pais da verdade...). É, a obscuridade tem seus pesos...
Corri meus olhos pela noite, a clara noite do nada, e achei a figura que parecia a tua, Deméter. Tu colhias flores e dançavas como de costume, sem a cara retorcida pelo terror. Atônito, aflito, estava agora eu. O silêncio, Deméter, o silêncio dos mistérios de tua filha agoniava-me. Eram as vozes faltantes de uma visão, eram meus erres retroflexos agora inexistentes, eram os toques que errôneos e em disagio (esse termo italiano que conheces tão bem) não passavam de um esbarrão ritualizado. Pensava em ti com os olhos em ti e, agoniado, tentava a construção da tua ausência. Era o silêncio de vozes que não mais tocavam-se uma na outra. A conversa infinita era agora o silêncio infinito. E, por vezes, não são a mesma coisa?
Mas tu estavas ali, correndo com as flores, já alegre, com os olhos cheios da imagem da bela filha com quem agora passavas teus longos verões semestrais. Eu me calava no inverno, na solidão das neves matinais, no semestre nebuloso e escorregadio, no branco de onde não sabia sair e para o qual nossas vozes faltantes me reenviou no momento em que tua imagem veio a mim.
Curioso como este Adagio em G menor de Albinoni (ah!, o barroco, este barroco... e por isso, Veneza/barroco, o Canaletto que vi enquanto me ausentava), que Pasolini usa como leitmotiv da sua Raiva - seu disagio no mundo - e que agora ocupa meu sábado, toca-me como o toque sonoro que faltou; curioso como o agio, este espaço livre e vazio (ad-jacens), torna-se comodidade - adágio - na música. Porém, o cômodo faz-se, ao mesmo tempo, agonia irrefreável.
É, Deméter, talvez o disagio, o des-conforto, o in-cômodo, o mal estar da tua ausente presença no meu sonho, tenha sido composto na Veneza do século XVIII, talvez em alguma calle pela qual eu passava pensando nos teus sussurros. Nossas vozes que faltam, nossos rostos ainda infames pela cólera do toque impreciso, o sorriso debochado de Clemente ao falar dos mistérios que celebravam tua filha, são frutos do meu devaneio, do meu sonho, do estridente violino que termina o adagio de Albinoni, dos onze minutos desta música que agora me agoniza, do silencioso disagio que tomou o lugar do que teria sido um compassado encontro em adágio...

Imagem: Canaletto. Canale Grande. 1723-24 Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid.

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