por Éric Baudelaire
Hipótese: pediríamos para um artista que trabalha nas fronteiras entre o documento e a ficção, e que aposta nos efeitos de verdade produzida por seu encontro, para conceber uma exposição imaginária. Ele pensaria em nela agrupar obras que testemunhem o inimaginável, colocando-as onde as imagens faltam. Sobre essa exposição, que nunca aconteceu, ele deixaria notas sobre os poderes das imagens e sobre sua capacidade de agitar a ordem do tempo.
Kioto, 13 de abril –
Esta noite, cineclube do domingo. Projeção entre amigos e uma conversa informal. Esta semana, sem anunciar o programa, escolhi A Bomba, de Peter Watkins. Voz em off, fria e factual, acompanhada de sequências em preto e branco de um falso documentário descrevendo as conseqüências devastadoras de um bombardeamento nuclear em Kent, no Reino Unido, em 1965.
Na sala, o clima é tenso. A violência inaudita das estatísticas anunciadas, os planos fixos intermináveis de crianças agonizando, valas comuns, carne queimada, congelam o sangue de nosso pequeno grupo cinéfilo que esperava, sem dúvidas, por um programa dominical mais divertido. Assim que o filme termina, o mal estar é palpável, quase fisiológico. “Muito cru, muito brutal, sem nuances, sem misericórdia”: quarenta anos depois de sua censura pela BBC (ainda que comitente do filme), a paulada de Watkins permanece intacta, ao ponto de, por pouco que seja, quase acabar com o espaço crítico da discussão – trata-se menos de um “filme” do que de uma agressão visual e cognitiva contra à qual se reage visceralmente.
Da minha parte, passei um tempo da projeção sentindo alguns desconfortos particulares: um dos convivas convidou uma amiga japonesa para a projeção, e eu não sei se uma exibição de um evento atômico é suportável por alguém que provém de uma cultura que verdadeiramente conheceu a Bomba. A discussão que se seguiu foi contrária às minhas expectativas. Os aspectos mais frágeis são os dos convivas franceses. A amiga japonesa parece muito menos surpresa.
Hiroshima 21 de agosto –
Retorno para Kyoto, oportunidade de fazer uma parada em Hiroshima e ali vistar o Peace Memorial Museum. Documentos, artefatos e testemunhos do primeiro bombardeamento atômico apresentados num circuito cronológico, com perspectivas científicas sobre o Manhattan Project e a fabricação de “Little Boy”, da qual uma reprodução em escala natural é apresentada na sala.
O contexto desse memorial é complexo: dizer o horror, mas evitar as armadilhas de uma leitura da história que tenderia para o argumento (americano) do “era inevitável”, desviando-se da demonstração explícita (mas perigosa) de que a missão do Enola Gay, em 6 de agosto de 1945, era um gesto enormemente político e resolutamente bárbaro. A estratégia de museu do memorial é concebida ao redor de uma lógica de acumulação desordenada e polimorfa: documentos científicos e gráficos sobre a ciência do átomo, enunciações de cifras evocando a escala da destruição, maquetes e amostras arquiteturais documentando a potência da explosão e testemunhos de sobreviventes. A impossibilidade ética e historiográfica de propor uma montagem muito ordenada, classificada e diretiva desses dados conduz assim à estratégia do volume, da evocação e da repetição – e, por consequência, a uma muito ampla abertura de interpretações – o que dá lugar a misturas por vezes surpreendentes.
As vitrines frias e científicas sobre a física nuclear (parecidas com aquelas do Palácio da Descoberta) podem parecer deslocadas alguns metros do pathos potente de um testemunho de sobrevivente enunciado em primeira pessoa. O dispositivo sugere a força de sedução da pesquisa científica (o que de mais inebriante do que a fissão nuclear, na qual o infinitamente pequeno dá o infinitamente potente?), um feitiço que fez com que muitos civis bem intencionados, como o Dr. Oppenheimer, ultrapassassem a capacidade humana imediata no resultado de seus trabalhos.[1] A empatia em relação aos casacos brancos de Los Alamos evidentemente não é o objeto primeiro da cenografia, mas a acumulação de dados torna essa leitura possível e é justo nesse gênero de agenciamento aberto que toma corpo a função do memorial.
A repetição também surpreende. Numa primeira sala duas maquetes monumentais do centro da cidade de Hiroshima, uma antes e outra depois da explosão. Numa das salas seguintes encontra-se uma segunda maquete do depois, dominada pela mesma bola vermelha que flutua sobre o epicentro. Dispositivo cinematográfico mais do que de museu: todos poderão reler o mesmo objeto, como um efeito de montagem, um laço, ou uma pausa da imagem em um filme.
Seguem as salas dos artefatos. Trapos de vestimentas queimadas; imagens de corpos irradiados disformes; o traço de uma sombra projetado num muro de tijolos por um homem vaporizado pelo calor; e, sem dúvidas, o mais macabro, esta pequena pilha de restos humanos de Noriaki Teshima, fragmentos de unhas e pedaços de pele carbonizados, preservados em natura e velados por sua mãe para mostrar ao pai no seu retorno do fronte.
Sucessão de dados brutos, de informações científicas e relação de cifras que ultrapassam nossas faculdades de representação visual com artefatos concretos que servem de atenuante para uma imagem mental que cada um fará. O que toca nessa visita ao museu de Hiroshima é que seu desenvolvimento, seu funcionamento e a sensação que provoca são idênticos ao A Bomba de Watkins. Ou ainda, deveria dizer, o falso documentário de Watkins (1965) está articulado precisamente segundo a mesma lógica que o Hiroshima Peace Memorial Museum, inaugurado em 1955. Mesmo ponto de partida na forma: a escala do horror atômico justifica (isto é, torna indispensável) uma exposição crua, brutal e massiva de informações e de formas de visualização diversas. Mesmo ponto de partida de fundo: dizer alto e forte “Hiroshima, nunca mais”. A experiência do filme, em abril, e aquela do museu, hoje, colidem no meu pensamento. Conjugar um papel de arquivo com uma função militante, mas com esta diferença: em Hiroshima os fatos são relatados, em Watkins eles são fabricados. Se o museu de Hiroshima se apresenta como um memorial para a paz, o objeto-filme de Watkins é um ante-memorial, elaborado, de algum modo, de maneira preventiva na esperança de que não haja necessidade de construir um real a posteriori.
Na massa de dados do museu de Hiroshima, cada visitante faz sua seleção visceral e sai com um fantasma que o assustará. Da minha parte, dois documentos permanecem gravados na memória. O primeiro é o relatório americano redigido para o ministério da Guerra, no qual um comitê de cientistas do Manhattan Project preconiza uma política segundo a qual as populações civis das cidades atingidas por um bombardeamento atômico seriam prevenidas com quarenta e oito horas de antecedência, tendo assim tempo de evacuar. O argumento desse memorando é mais utilitário do que humanitário. Nele, trata-se de demonstrar que todos os objetivos estratégicos da bomba podem ser atendidos sem as consequências negativas que um massacre civil em grande escala teria para a ocupação do Japão depois da guerra e para a imagem dos Estados Unidos no mundo. A proposição do “pré-aviso” foi debatida, mas em última instância não foi mantida.
O segundo documento evoca o destino da cidade de Kokura, alvo previsto do segundo bombardeamento atômico, em 9 de agosto. Trata-se de uma sequência filmada, a partir de um segundo avião, mostrando o itinerário do bombardeiro Bockscar, seus três giros acima de Kokura à procura de um buraco na cobertura de nuvens imprevista que tornava impossível a identificação visual do objetivo, e, finalmente, seu desvio para o alvo secundário: Nagasaki.
Dois documentos como inícios de imaginários chocantes. No primeiro, os argumentos a favor de um pré-aviso provaram-se justos e o documento abre assim o espaço de uma ficção dolorosamente próxima, na qual os argumentos razoáveis das pessoas civilizadas teriam salvo centenas de milhares de vidas. O segundo documento é uma claraboia sobre o estranho destino de uma cidade salva do inferno por algumas nuvens. Na linguagem factual e precisa das comunicações militares dos papéis timbrados da Secretary of War, e na sequência de filme 16mm de um avião prateado voando no belo céu azul, o horror do real é colocado face a face a uma outra História possível, de um imaginário do que foi evitado ou poderia ter sido: é o espaço fictício do condicional passado, do teria sido. O filme de Watkins é o seu dispositivo no espelho: usurpando o formato de um documentário da BBC, apresenta o apavorante documento do futuro anterior, do terá sido.
Paris, semana do 13 de outubro – Notas de reflexão para o comissariado da exposição Factographies:
Se o século XX é o da imagem, suas horas mais obscuras demarcam-se pelas lacunas de seu colocar-se em imagem. Há poucas fotografias no museu de Hiroshima porque não há imagem “suficiente” para dizer Hiroshima. Há o ícone da nuvem-cogumelo, mas é um símbolo gráfico genérico mais do que uma fotografia (quem pode distinguir o cogumelo de Hiroshima daquele de Alamogordo ou de Bikini?). Nada de imagens de valas comuns, de cadáveres a perder de vista, apenas essas imagens das ruínas de depois – o vazio arquitetônico como substituto visual para a pulverização dos corpos. Para aquilo que são traços do humano, o museu reconstituiu um diorama iluminado por uma luz escarlate, representando duas crianças escalando os escombros, pedaços de carne queimada nas faces e nas mãos dos manequins. Por que essa exibição de um teatro sanguinário? Sem dúvidas para substituir as imagens que faltam – aquelas que talvez desapareceram com a ocupação americana, aquelas que não existiram porque não havia pessoas para fazê-las, ou aquelas que faltavam porque a Bomba deixou somente poucos restos humanos para fotografar. Não há, portanto, nem poderia haver, imagens do evento atômico. E mesmo se houvesse, seriam suficientes?
Essa questão da “representabilidade do inimaginável” liga Hiroshima à Auschwitz. Pois, não obstante a sistemática narcisista e pornográfica da documentação nazista dos campos, também não há imagens das câmaras de gás, a não ser os quatro fragmentos de filmes do Sonderkommando cuja publicação deu lugar à polêmica e ao belo texto de Georges Didi-Huberman, Images malgré tout. A interdição absoluta de fotografar as câmaras de gás (também para os SS) não impediu detentos anônimos de arrebatar do inferno de Auschwitz essas quatro imagens difusas, únicos documentos fotográficos conhecidos representando o funcionamento do dispositivo principal dos campos de extermínio. Esse valor simbólico das imagens únicas do sistema de destruição do povo judeu são o epicentro do debate sobre a capacidade da imagem dizer o indizível da Shoah. Imagens inadequadas, pois elas mostram apenas muito pouco face à amplitude do Holocausto. Imagens inexatas, já que imprecisas. Imagens fragmentárias que saberiam figurar somente uma verdade insignificante face à escala “impensável” de Auschwitz. E desse fato, se não é possível ter imagem total, única e integral da Shoah, não é preciso invocar todas as imagens? Gerard Wajcman, desse modo, argumenta a invisibilidade do genocídio ao lado de Claude Lanzmann, o qual chegará a dizer: “se tivesse encontrado um filme existente (...) girado por um SS e mostrando como três mil judeus, homens, mulheres, crianças, morriam juntos, asfixiados numa câmara de gás do crematório II de Auschwitz, se tivesse encontrado isso, não só não iria mostrar, mas o teria destruído. Não sou capaz de dizer o porquê. É assim.”[2]
Diante de Lanzmann, para quem nenhuma imagem é capaz de dizer essa história, Jean-Luc Godard, na Histoire(s) du cinéma, trabalha uma montagem de imagens existentes para demonstrar que todas as imagens falam apenas disso, concedendo-lhes até mesmo um potencial redentor já que “mesmo marcado de morte / um simples retângulo / de trinta e cinco / milímetros / salva a honra / de todo o real”.[3] Nessa polaridade tornada polêmica, a oposição entre iconoclastas e iconófilos interessa-me sobretudo pelas vias que abre aos artistas diante desse diagnóstico partilhado sobre a pobreza das imagens: aqueles que, como Lanzmann, as abandonam para se consagrar à palavra e ao testemunho e aqueles que, com Godard, as revêem, relêem e as fazem colidir para reinventá-las à luz da História. Em relação a essa dialética, é preciso agregar uma terceira via, a de Watkins: diante da natureza lacunar da imagem, fabriquemos as imagens! Fabriquemos um excedente de imagens, uma barragem de imagens, uma overdose de imagens. E mais, pelo dispositivo do falso documentário, elevemos essas imagens ao estatuto de documento-simile.
É evidente que, sobre o terreno delicado das grandes tragédias humanas, a fabricação de imagens é uma empresa perigosa... A armadilha pode ser aquela da mediocridade cinematográfica e da banalidade bem intencionada. Nos simulacros de Auschwitz de Steven Spielberg, o que gera problema é a inserção, numa pura ficção clássica, do preto e branco em falsas imagens de arquivos para “aumentar” uma indústria espetacular. Roberto Benigni opta por uma encenação quase burlesca da tragédia – um pouco superficial para o gosto de alguns, seu filme, no entanto, junta-se à estratégia de Imre Kerstész (quem, aliás, o defendeu) e do essencial do teatro israelense sobre a questão, tratando menos de “falsas imagens” do que de pura teatralização enquanto único meio possível para evocar a Shoah.
A questão é, portanto, a de saber onde situar a grande obra factográfica de Watkins. Sua tarefa cinematográfica (tenho até vontade de falar de missão, já que seu método de trabalho revela-se um sacerdócio) compreende ao menos dois objetivos: re-visualizar episódios históricos em prol de um revisionismo dominante, para deles se re-apropriar (Culloden, La Commune) e inventar cenários apavorantes no seu realismo (A Bomba, Punishment Park) por urgência política. Os dois gêneros se juntam na sua vontade profilática. Também os murais históricos são filmados com um dispositivo de mise en abîme midiático, um anacronismo que permite desenvolver um olhar critico sobre as questões da escritura da História pelos “mass-media” e sublinhar a contemporaneidade dos jogos políticos de acontecimentos que datavam de muitos séculos. Mas o engajamento é mais urgente ainda nos filmes de pura ficção: A Bomba devia ser difundida três anos após a crise dos mísseis de Cuba, na qual a humanidade foi fortemente ameaçada de Armageddon, e os excessos de Punishment Park não pareceriam mais muito fictícios na era de Guantânamo, do waterboarding e das extraordinárias rendições da CIA.
Para Maurice Blanchot “há um limite no qual o exercício de uma arte, qualquer que seja, torna-se um insulto à infelicidade”. Watkins aborda o problema em sentido inverso: um insulto à infelicidade seria não exercer a arte para alargar seus limites. Falar de “indizível” em relação ao horror do genocídio não leva àquilo que Giorgio Agamben descreve como uma “adoração mística”, a qual contém o risco de tender ao silêncio?[4] Para Watkins, é o silêncio que seria intolerável, portanto, ele trabalha para cumprir o documento-testemunho no documento-imagem: da imagem mental que emana de palavras e de dados históricos, ele fabrica as imagens. Ele confia na sua eficácia desde que estejam fora do registro neutralizador da imagem-clichê banalizadora, a partir da qual se equivocam Spielberg ou Benigni, e isso por dois meios: seu volume (repetição, excesso e caráter explícito) e sua proximidade (ele as traz para próximo de nós, em Kent, e não em um Japão distante e exótico). O imperativo político consiste em trazer violentamente a matéria para nossas salas, Bring the War Home, como pronunciaria Martha Rosler ao atualizar o método choque de Orson Welles com sua rádio-transmissão de A Guerra dos Mundos.
A questão da fabricação, da falsificação ou da descontextualização de documentos leva a duas questões essenciais: o que faz imagem e o que faz uma imagem. Para Watkins, a imagem tem uma função alarmista (no sentido positivo do termo), portanto, ele elabora o espaço fictício do documento e alarga sua função preventiva. Nesse sentido, suas imagens se parecem com as imagens mentais que se descolam dos documentos de Hiroshima, aquelas que me fizeram entrever o que teria sido o fim da guerra sem centenas de milhares de vítimas civis dos bombardeamentos atômicos, ou visualizar a sorte desoladora que fez com que Kokura fosse poupada e Nagasaki aniquilada. E é talvez essa aproximação, justamente, o que explica a reação exposta por essa amiga japonesa no cineclube: de maneira figurata, ela já tinha visto esse lugar. Mais familiar com a matéria, ela tinha mais capacidade do que nós de apreender o projeto de Watkins naquilo que ele é, a saber, o ante-memorial de um cataclismo iminente, mas evitável.
Justapor uma ficção que se dirige para o documento e documentos que abrem a via de uma ficção. Fazer com que dialoguem num mesmo espaço de exposição.
Georges Didi-Huberman diz, sobre a importância das imagens apesar de tudo, sublinhando que em “cada produção testemunhal, em cada ato de memória, as duas – linguagem e imagem – são absolutamente solidárias, não cessam de trocar suas lacunas recíprocas: uma imagem aparece ali onde parece falhar a palavra, uma palavra muitas vezes surge ali onde parece falhar a imaginação.”[5]
Da mesma maneira, Factographies propõe uma reflexão sobre praticas artísticas que tornam absolutamente solidários documento e ficção, cada um superando a insuficiência do outro. E já que a dialética Watkins / Museu de Hiroshima, produção testemunhal do teria / terá sido, joga-se ao redor da ideia essencial do ante-memorial, a introdução de uma nova peça à exposição se impõe. Factographies deve incluir a documentação do projeto Commemor (Comissão Mista de Troca de Monumentos aos Mortos), 1970, no qual Robert Filliou orquestra, com a potente leveza que o torna aqui indispensável, uma troca fictícia de monumentos aos mortos entre as cidades da Holanda, da Alemanha e da Bélgica no lugar de verdadeiras guerras. Commemor como resposta escultural ao gesto cinematográfico de Watkins.
Bruxelas, 18 de outubro –
Por acaso, durante um passeio, visito a galeria Jan Mot, onde acontece o vernissage da exposição de Deimantas Narkevicius com a projeção de seu filme The Dud Effect. Acaso que faz bem às coisas: estou prestes a completar a seleção das obras para Factographies e esbarro nesse filme que é em parte inspirado, ou, digamos, realizado, em A Bomba de Watkins. Narkevicius nele exibe a antípoda dos acontecimentos fictícios de Kent, em 1965: o lançamento de mísseis nucleares de tipo R-14 a partir de uma base soviética na Lituânia nos anos setenta.
The Dud Effect é o contraponto de A Bomba desde o ponto de vista narrativo (exibe o lançamento ao invés do impacto), mas também estilístico: tudo é feito para tornar ordinária, burocrática e ordenada a ação que acontece. Nada de emoção nos planos, apenas uma descrição clínica de uma rotina administrativa. Não é questão de tomada de decisão no lançamento dos mísseis (portanto, nada de abertura explícita sobre questões morais) e seu impacto é apenas ligeiramente sugerido. A maior parte do filme mostra um oficial anônimo ditando, ao telefone, ordens de natureza técnica para interlocutores, também eles, anônimos (“posto 101”, “posto 505”). Documentário (já que baseado em verdadeiros procedimentos) mais do que ficção cinematográfica (nada botão vermelho, nada de console eletrônico, apenas uma voz em um telefone e um homem impassível). No momento do lançamento, o rosto do oficial é simplesmente sobreposto pela luz dos reatores fora de campo. A sequência dos acontecimentos é sugerida em planos de natureza circundante, um som de vento violento, depois uma série de planos fixos atuais de instalações nucleares soviéticas em avançado estado de ruína (silos vazios, hangares afundados). Trata-se de um mundo pós-apocalíptico ou apenas de ruínas do tempo, as marcas confirmadoras do fim do império soviético? E se se trata da segunda hipótese, por que não nos confortamos por essas imagens de um passado que, justamente, nem existiu?
No teria sido do Museu de Hiroshima, no terá sido de Watkins e no condicional simples de Filliou, é preciso, portanto, agregar o não foi de Narkevicius. Nessa conjugação de obras, entre outras constantes relacionadas com seu valor “memorial”, de modo essencial está a questão de tempo e de verdade, ou ainda, do modo como o tempo coloca em crise a noção de verdade.
Essas diferentes narrações dos fatos ilustram o paradoxo dos “futuros contingentes”, problema filosófico revisitado desde a Antiguidade e resumido assim por Gilles Deleuze: “Se é verdade que uma batalha naval pode acontecer amanhã, como evitar uma das duas consequências seguintes: ou o impossível procede do possível (já que, se a batalhe acontece, não é mais possível que ela não aconteça), ou o passado não é necessariamente verdadeiro (já que ela podia não acontecer).”[6]
Leibniz chega a uma solução muito apropriada para esse paradoxo: a batalha naval (como o bombardeamento atômico) pode acontecer ou não acontecer, mas não é no mesmo mundo, ela acontece em dois mundos que não são “compossíveis” entre si. Invertendo a noção de “incompossibilidade” ele resolve o paradoxo oferecendo uma pausa à crise da verdade, já que é o incompossível (e não o impossível) que procede do possível. “O passado pode ser verdadeiro sem ser necessariamente verdadeiro.” E, a partir disso, Deleuze evoca a resposta de Borges a Leibniz (e nós invocamos Watkins e Narkevicius da mesma maneira): “a linha reta como força do tempo, como labirinto do tempo, é também a linha que se bifurca e que não para de se bifurcar, passando por presentes incompossíveis, retomando passados não-necessariamente verdadeiros.”[7]
Os documentos e obras de Factographies dialogam nessa simultaneidade. A exposição se constrói, de algum modo, ao redor dessa ideia deleuziana das “potências do falso” para destronar e substituir a forma do verdadeiro – potência artística, criadora, na qual a narração abandona o estatuto verídico para se fazer falsificável, e isso não em nome de uma simples subjetividade de autor (“cada um com sua verdade”), mas por uma real necessidade pela qual não haveria outra saída que locupletar o espaço entre story e history.
Éric Baudelaire é artista. Seu trabalho sobre a Anabase será exposto este verão no centro de arte contemporânea da Sinagoga de Delme. Uma versão deste texto foi publicada no número 2010 da revista Trouble, catálogo de uma exposição fictícia intitulada Factographies.
[1] Mesmo se mais tarde, numa entrevista concedida em 1965, o Dr. Oppenheimer evocava o primeiro teste nuclear no deserto de Alamogordo nestes termos: “We knew the world would not be the same. A few people laughed, a few people cried. Most people were silent. I remembered the line from the Hindu scripture, the Bhagavad-Gita ; Vishnu is trying to persuade the Prince that he should do his duty, and to impress him, takes on his multi-armed form and says, ‘Now I am become Death, the destroyer of worlds.’ I suppose we all thought that, one way or another.”
[7] Ibid., p 171.
Texto publicado em Vacarme 55, printemps 2011. Disponível em: http://www.vacarme.org/article2027.html (tradução para o português: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Kenichi Nakano. Centro de Hiroshima depois da bomba. 1975.
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