domingo, 16 de junho de 2013

Polícia Soberana



Giorgio Agamben

Uma das lições inequívocas da guerra do Golfo é a entrada definitiva da soberania na imagem da polícia. A desenvoltura com a qual o exercício de um jus belli particularmente destruidor travestiu-se aqui, com modesta aparência, como uma “operação de polícia” não deve ser considerada (como fizeram alguns críticos justamente indignados) como uma cínica ficção. Talvez a característica mais espetacular dessa guerra é que as razões avançadas para justificá-la não podem ser descartadas como super-estruturas ideológicas destinadas a recobrir uma desenho escondido: ao contrário, a ideologia, nesse meio tempo, penetrou de modo tão profundo na realidade que as razões declaradas (em particular aquelas que concernem à ideia de uma nova ordem mundial) devem ser lidas de modo rigoroso. Todavia, isso não quer dizer, como juristas improvisados e apologistas com má fé quiseram fazer crer, que a guerra do Golfo tenha significado uma salutar limitação das soberanias estatais, dobradas para servir de polícia em favor de um organismo supranacional.
O fato é que a polícia, de maneira contrária à opinião comum, que vê nela uma mera função administrativa de execução do direito, é talvez o lugar em que se exponha com mais clareza a proximidade e quase a troca constitutiva entre violência e direito que caracteriza a imagem do soberano. Segundo o antigo costume romano, ninguém, sob nenhuma razão, podia se interpor entre o cônsul dotado de imperium e o lictor mais próximo que carregava o machado sacrificador (com o qual se executava as sentenças de pena capital). Essa contiguidade não é casual. Se o soberano é, com efeito, aquele que, proclamando o estado de exceção e suspendendo a validade da lei, marca o ponto de indistinção entre violência e direito, a polícia, por assim dizer, move-se sempre em similar “estado de exceção”. As razões de “ordem pública” e de “segurança”, sobre as quais ela deve decidir em cada caso, configuram uma zona de indistinção entre violência e direito perfeitamente simétrica àquela da soberania. Com razão observava Benjamin que:

a afirmação de que os escopos do poder de polícia sejam sempre idênticos, ou mesmo apenas conexos com aqueles do direito remanescente, é de todo falsa. Antes, o “direito” de polícia marca justamente o ponto em que o Estado, quer por impotência, quer pelas conexões imanentes de todo ordenamento jurídico, não está mais à altura de garantir, por meio do ordenamento jurídico, os fins empíricos que pretende atingir a todo custo.

Daqui a exibição das armas que caracteriza em todos os tempos a polícia. Decisiva não é tanto a ameaça contra quem transgride o direito (a exibição acontece, de fato, nos mais pacíficos lugares públicos e, em particular, durante as cerimônias oficiais), mas a exposição dessa violência soberana testemunhada na proximidade física entre o cônsul e o lictor.
Essa embaraçosa contiguidade entre soberania e função de policia se exprime no caráter de inatingível sacralidade que, nos antigos ordenamentos, associa a figura do soberano àquela do carrasco. E tal proximidade talvez nunca fora mostrada com tanta evidência como no acaso fortuito (narrado por um cronista) que, em 14 de julho de 1418, fez com que se encontrassem, numa rua de Paris, o Duque de Borgonha, recém chegado à cidade como conquistador na chefia de suas tropas, e o carrasco Coqueluche, que naqueles dias para ele trabalhara de modo infatigável: o carrasco, coberto de sangue, aproxima-se do soberano e o pega pela mão gritando “Meu caro irmão!...” (Mon beau frère!)
A entrada da soberania na figura da polícia, portanto, não tem nada de tranquilizador. É prova disso o fato, que não cessa de surpreender os historiadores do Terceiro Reich, de que o extermínio dos judeus foi desde o início concebido exclusivamente como uma operação de polícia. É notório que jamais se pôde encontrar um único documento no qual o genocídio fosse atestado como decisão de órgão soberano: o único documento de que dispomos a esse respeito é o processo-verbal da conferência que, em 20 de janeiro de 1942, reuniu no Grosser Wannsee[1] um grupo de funcionários de polícia de média e baixa patentes, dentre os quais se destaca para nós apenas o nome de Adolf Eichmann, chefe da divisão B-4 da Quarta seção da Gestapo. Apenas por que foi concebido e realizado como uma operação de polícia é que o extermínio dos judeus pôde ser tão metódico e mortífero; mas, por outro lado, é justamente enquanto “operação de polícia” que ele parece hoje, aos olhos da humanidade civil, tanto mais bárbaro e ignominioso.
Mas a investidura do soberano como agente de polícia tem um outro corolário: torna necessária a criminalização do adversário. Carl Schmitt mostrou como, no direito público europeu, o princípio segundo o qual par in parem non habet jurisdictionem excluía o fato de que os soberanos de um Estado inimigo pudessem ser julgados como criminosos. A declaração do estado de guerra não implicava a suspensão desse princípio nem das convenções que garantiam que a guerra contra um inimigo – no qual se reconhecia uma dignidade similar – se desenrolasse respeitando regras precisas (uma delas era a clar distinção entre a população civil e o exército). De modo contrário, nós podemos ver com nossos olhos como, seguindo um processo iniciado ao fim da Primeira Guerra mundial, o inimigo é primeiro excluído da humanidade civil e marcado como criminoso; apenas na sequência torna-se lícito aniquilá-lo com uma “operação de polícia” que não é submetida a nenhuma regra jurídica e pode, portanto, confundir, com um retorno às condições mais arcaicas da beligerância, população civil e soldados, o povo e seu soberano-criminoso. Esse deslizamento progressivo da soberania para as zonas mais obscuras do direito de polícia tem, no entanto, ao menos um aspecto positivo que convém aqui assinalar. Aquilo de que os chefes de Estado, que se lançaram com tanto zelo na criminalização do inimigo, não se dão conta, é que essa criminalização pode voltar-se a qualquer momento contra eles. Hoje não há sobre a terra um chefe de Estado que, nesse sentido, não seja virtualmente um criminoso. Quem quer que hoje vista o triste redingote[2] [manto] da soberania sabe poder ser um dia tratado como criminoso por seus colegas. E por certo não seremos nós a lamentar por eles. Pois o soberano, que de bom grado consentiu apresentar-se vestido de tira e de carrasco, mostra enfim hoje sua originária proximidade com o criminoso.

                                                                                                (1991)




[1] Região de lagos a sudoeste de Berlin na qual se encontrava o edifício – Wannsee Villa –, onde os oficiais nazistas se encontraram para discutir o plano da Solução Final. (N.T.)
[2]  Espécie de vestido longo feito sob medida que passa a ser usado no século XVIII pelas mulheres dos círculos da corte inglesa, e que, entre 1785 e 1795, foi incorporado pela moda francesa e denominado redingote. (N.T.)


Giorgio Agamben. Polizia Sovrana. In. Mezzi senza fine. Torino: Bollati Boringhieri, 1996. pp. 83-86. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko) 


Imagem: Rogier van der Weyden. Philippe le bon. Depois de 1450. Musée de Beaux-Arts, Dijon.  

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