sábado, 3 de maio de 2014

Pequeno parágrafo sobre a vida nova


Do livro da memória pouco se sabe. Por ele corremos os dedos ansiosos por encontrar, tal qual um nome numa agenda, o momento no qual, agora, pensamos termos sido felizes. O movimento, a busca, a ininterrupta vontade de ter à mão a matéria da felicidade. Tudo isso, como uma aparente fonte inesgotável de sentido, nos amarra num jogo em que, de antemão, sabemos ser perdedores. A corrida aos lugares frios em dias quentes, aos lugares quentes em dias frios, tudo como se a fuga pelas páginas do tal livro fosse a possibilidade de uma vida nova (e não é do livro da memória que Dante tira a matéria para contar sua Vita nuova?). Mas ao nos darmos conta dos borrões, que estão por toda parte no livro, surge o medo de apagá-los, da perda de matéria da vida. Um sentimento profundo, um calafrio que nos imobiliza, que nos cala. As páginas do livro se agigantam, parecem nos deglutir. À volta, tudo parece espaço em branco, página vazia. Não há mais como preenchê-las. Meus lápis estão com as pontas grossas e já não consigo escrever, nem mesmo os versos que poderiam ser arremedos da vida de outrora. A vida não é nova, mas envereda pelos mesmos velhos corredores com cheiro de bolor  e em cujas paredes ainda gostaria de ver as fotos de tempos que poderiam estar no livro. A vida não é nova, mas sempre o mesmo e antigo jogo de espelhos e ecos, nada mais do que o íntimo encontro de Narciso e Eco.


Imagem: Nicolas Poussin. Eco e Narciso. 1628-30. Museu do Louvre, Paris.   

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