sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Carta à destinatária impossível



Para minha destinatária impossível

Querida, acordei com uma frase estranha que me parecia soprada desde o último sonho da noite: "há um silêncio intransigente que faz dançar as palavras nas bocas dos poetas" (e coloco a frase entre aspas pois o limiar entre sonho e vigília é o no man's land em que as palavras vagam independentes de quem possivelmente as fala). Tão logo levantei, pensando nesse silêncio , acabei lendo um poema da Ingborg Bachman que deixo aqui para você:

Vós, palavras, de pé, sigam-me!
e se já fomos longe,
longe demais, ainda se vai
mais longe, para fim nenhum.

Não clareia.

A palavra 
só irá
arrastar consigo outras palavras,
a frase frases.
O mundo bem queria
definitivamente
impor-se,
estar já dito.
Não o digam.

Palavras, sigam-me!
Para que nada seja definitivo
- nem esta ânsia de palavras
nem o dito e o contradito!

Por um momento não deixem
falar nem um sentimento,
que seja outro o exercício
do músculo coração.

Não deixem, digo-vos, não deixem!

E ao mais alto ouvido
nada, digo-vos, pode ser sussurrado,
que nada te ocorra sobre a morte,
deixa, e segue-me e sem clemências
nem amarguras
sem compaixão
não sinalizando
e não desprovida de sinais -

Uma coisa é que não: a imagem
na teia do pó, cascalho oco
de sílabas, palavras de morte.

Nem uma palavra de morte,
Vós, palavras!

O nó que as palavras deram em meu sonho talvez tenha sido o mesmo que ocupara minha garganta depois da frase ouvida no despertar. A boca cheia de palavras, querida, não pode dizer o mundo. Estamos a distâncias intransponíveis, mas estes mapas que lhe escrevo erram ao léu pelas noites de sonhos e frases soltas. A poeta exorta as palavras e, num outro poema, clamava a salvação pela palavras. Mas o mundo, o nosso mundo mapeado nestas cartas, não tem remédio - e o velho Bolaño acertou em dizer que tal é nossa salvação: estamos condenados ao mundo pelas palavras que ora nos faltam ora nos inundam, querida. Talvez agora apenas escrevo porque me dou conta de que a vida é fábula e de que você, tal qual a Matilda dantesca, está na outra margem deste rio chamado esquecimento. 

Do seu remetente impossível.


Imagem: Franco de' Russi. Divina Commedia (manuscrito Urb. lat. 365). 1477-82. Biblioteca Apostólica do Vaticano.

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