domingo, 17 de agosto de 2014

Estudo sobre a memória IV



Schubert, nos impromptus, talvez nos tenha dado as mostras do tempo oportuno, do tempo leve, do kairós. As vozes do piano, carregadas na improvisação, dançam ao relento e à neblina da manhã de domingo. A casa está cheia de lembranças que vagam entre alegres gritos que dizem: "não te lastimes", tal como Cortazar um dia percebeu em seu apartamento parisiense. As lembranças se misturam com as vozes do piano e por que a sombras de Ariadne insistem em lançar seus fios, como se do labirinto de memórias e esquecimentos, de passados e presentes, fosse possível sair. Aliás, dizia um poeta italiano, por que achar o fio do labirinto se o importante é viver dentro dele? As improvisações ao piano, os gritos alegres que ocupam o apartamento, a vista que se obscurece e se desfoca no instante em que a vida é toda prenhe de instantes outros, e a voz de Dionísio que canta: "Sê prudente, Ariadne!... / Tens pequenas orelhas, tens minhas orelhas: / Põe aí uma palavra sensata! / Não é preciso primeiro odiarmo-nos se devemos nos amar?... / Sou teu labirinto...". As vozes, talvez todas elas (a do piano, a dos gritos, a das lembranças), não são mais do que um apelo dionisíaco: descarregue, como um animal leve, a vida, porque "é possível viver quase sem lembrança, e mesmo viver feliz, como mostra o animal; mas é inteiramente impossível, sem esquecimento, simplesmente viver." O impossível, assim, toca todos os instantes que habitam este instante, e viver, simplesmente, permanece - insondável - uma tarefa no labirinto... 

Imagem: Hugues Taraval. Baco e Ariadne. Metropolitan Museum of art, NY

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