Em uma das vias internas daquele cemitério notei algo peculiar: quase todas as placas com indicações de nomes, datas de nascimento e falecimento, homenagens, lembranças, enfim, epitáfios de modo geral, haviam sido arrancadas. Em alguns mármores ainda era possível ver a marca da violência do gesto de retirada de tais placas (arranhões, sinais de espátula etc.), sinais que davam notas de que a ação não era algo autorizado pelos vivos daqueles mortos. Aquele cemitério, cujas sibipirunas frondosas velavam pelos restos dos ali sepultados, era muito recente para que ninguém notasse a falta das placas (é de se espantar o fato de que sepulturas de famílias importantes daquela localidade também haviam sido atacadas). A imagem, no entanto, era curiosa num sentido: nenhuma das fotos às quais correspondiam as placas furtadas havia sido retirada.
Lembrei-me imediatamente dos diários de guerra do Brecht. Fotos, recortes de jornais, enfim, imagens que diziam respeito à guerra eram tomadas por Brecht e reconfiguradas no seu ABC da Guerra. Para cada foto, por mais terrível que pudesse ser, Brecht compunha um poema lírico, um epigrama, que lhe servia de legenda. Ele sabia que os epigramas eram costume dos gregos (na época clássica), que os compunham justamente para suas sepulturas. O projeto brechtiano procurava dar às imagens recolhidas uma nova figuração a partir do texto, de modo que ao poeta era preciso fazer falar os mortos da guerra pelos epigramas como meio de justificar eticamente uma palavra poética em meio ao terror instaurado pela guerra. Ora, qual a razão para a associação por mim feita entre o ABC de Brecht e as placas furtadas do cemitério das sibipirunas? Talvez a resposta pudesse flamejar num outro cemitério que muito me chocara: o cemitério judaico de Ferrara.
É fato que entre 1942 e 1944 milhares de judeus foram deportados da Itália para campos de concentração nazistas. Famílias inteiras foram exterminadas e, com elas, os cuidados com os antepassados. Em Ferrara, algumas partes do cemitério judeu estão abandonadas, principalmente uma na qual estão os túmulos construídos por volta dos anos 1890-1930. A imagem era assustadora: centenas de tumbas completamente tomadas por musgos, pela hera, deixavam uma sensação de abandono absoluto (um vazio de vivos e mortos). De modo contrário ao que aconteceu no cemitério em que há pouco me encontrava, em Ferrara todos os dados, os nomes, os epitáfios, tudo, mesmo nos jazigos abandonados, ainda estava ali. Era como se daqueles seres de outrora, cujas memórias se foram em conjunto com os seus então sobreviventes para Auschwitz ou Treblinka, ainda era possível saber algo (ao menos o nome). É óbvio que esse seria um saber inventado, criado: eu mesmo inventei histórias para algumas daquelas pessoas - histórias nas quais acreditei, nas quais o meu eu-narrador fazia existir um mundo inexistente, mas não por isso menos real.
Os nomes judeus de Ferrara talvez fossem as legendas faltantes para as fotografias do cemitério das sibipirunas. Claro, estava divagando e, talvez, mesmo delirando. Porém, a composição que eu podia fazer entre os mortos judeus e os mortos imigrantes ou filhos de imigrantes (em sua maioria, como é comum no novo mundo, era disso que se tratava no cemitério das sibipirunas) era parte de uma vontade minha, uma vontade de inventar histórias nas quais poderia, como Brecht, entrever uma luz de vida em meio a um mundo de trevas. Talvez o fato de em cemitérios, em meio aos mortos, tentar encontrar uma luz seja um sintoma de uma dissonância, de uma incapacidade de ver em meio às luzes que cegam do mundo espetacularizado. As trevas são hoje brilhantes e, diante delas, criar, mesmo que histórias delirantes, é uma questão de sobrevivência e, acima de tudo, uma questão ética.
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