“(...). Em um tal mundo da uniformidade exterior forçada, ela [a filosofia] permanece monólogo erudito do passeador solitário, fortuita presa de caça do indivíduo, oculto segredo de gabinete ou inofensiva tagarelice entre anciãos acadêmicos ou crianças. Ninguém pode ousar cumprir a lei da filosofia em si mesmo, ninguém vive filosoficamente, com aquela lealdade simples, que obrigava um antigo, onde quer que estivesse, o que quer que fizesse, a portar-se como estóico, caso tivesse uma vez jurado fidelidade ao Pórtico. Todo filosofar moderno está política e policialmente limitado à aparência erudita, por governos, igrejas, academias, costumes e covardia dos homens; ele permanece no suspiro: “mas se...” ou no reconhecimento “era uma vez”. A filosofia, no interior da cultura histórica, não tem direitos, caso queira ser mais do que um saber interiormente recolhido, sem efeito; se pelo menos, o homem moderno fosse corajoso e decidido, ele não seria, também em suas inimizades, apenas um ser inferior: ele a baniria; agora contenta-se em revestir envergonhadamente suas nudez. Sim, pensa-se, escreve-se, imprime-se, fala-se, ensina-se filosoficamente – até aí tudo é permitido; somente no agir, na assim chamada vida, é diferente: ali o permitido é sempre um só, e todo o resto é simplesmente impossível: assim o quer a cultura histórica. São homens ainda –pergunta-se então -,ou talvez apenas máquinas de pensar, de escrever, de falar?” NIETZSCHE, F. Obras incompletas. (Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho). 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 63.
Desde o surgimento da filosofia, em sua configuração grega clássica, é possível observar uma tensão entre o discurso filosófico e seus supostos detratores (por exemplo, como imaginar o conjunto de questões suscitadas por Platão e Aristóteles sem o desafio da problemática sofística?). Parece ser uma condição de possibilidade da instauração filosófica um corpo a corpo com os limites da própria filosofia, uma crisis perennis (Bento Prado Jr.) entre a filosofia e seu fora, mesmo que esta relação e seu respectivo libelo estejam inscritos desde sempre em uma problematização eminentemente filosófica. Ou seja, todos os debates sobre o fim da filosofia – no interior desta - já nascem datados, e é quase impossível indicar uma filosofia específica sem um embate correspondente que lhe seja próprio.
A partir da segunda metade do séc. XIX é possível visualizar uma profissionalização e institucionalização crescentes do, chamemo-lo provisoriamente, habitus filosófico. Este quadro se agrava no presente, ao ponto de ser extremamente difícil encontrar textos de "filosofia contemporânea" que não estejam ligados, mesmo que indiretamente, ao espaço acadêmico ou magisterial formal. Agrega-se quase naturalmente à figura do filósofo, já ambivalente por tradição, o qualificativo de professor. Os campi mundiais ainda convivem com professores e estudiosos de filosofia, filósofos, porém, são tidos como espécies extintas ou em franco desaparecimento, tal como animais bravios sintomáticos de um passado que só resta enquanto ruína.
Neste sentido, os restos ou ruínas da tradição filosófica como um todo se manifestam nos espaços institucionais como uma barafunda de teóricos e textos, categorias e estilos disponíveis às modas prêt-à-porter de ocasião, manejáveis na luta por bolsas de pesquisa ou prestígio nas paróquias acadêmicas. A própria filosofia é assolada, portanto, por um niilismo sem precedentes. Vige e é eficaz: disciplinas e currículos oficiais, produções acadêmicas, avaliações. Seu significado, no entanto, foi reduzido a um grau zero, porquanto uma filosofia que não se conecta com um solo ontológico, com a vida, não pode ser chamada como tal.
A filosofia então se metamorfoseia no puro mito de um logos desencarnado, meramente escolar, resumindo-se - de forma quase hegemônica - a um trabalho de catalogação historiográfica asséptica e bem-comportada perante os poderes do capitalismo espetacular do presente. Durante muitos séculos a filosofia se manteve intacta dos ataques que lhe foram lançados de seu próprio interior. Porém, de sua redução a uma pura forma mística, do espectro - vendável - que assumiu seu lugar, ou bem teremos de nos conformar com uma morte definitiva e enterrar este cadáver (o lugar do luto na psicanálise freudiana) ou, contra uma ficção eficaz, postular novamente aquilo que, nos interstícios desta tradição, poderíamos ousar chamar de uma forma-de-vida filosófica (uma bíos theoretikos ou bios xénicos).
Ora, seria possível objetar, contra tudo o que foi dito até aqui, que tal crítica nada mais faria que novamente coonestar o clichê filisteu, paradoxalmente aceito até hoje por alguns redutos incautos da teoria, de que a filosofia não teria mais seu lugar em um mundo absolutamente tecnicizado e “secularizado”, desprezada, segundo Jaspers, “como produto final e mendaz de uma teologia falida” (Jaspers), relegada ao catálogo excêntrico dos inutensílios (Leminski), que teve seu último grande suspiro com Hegel em sua pretensão absoluta de equacionamento entre Razão e Realidade, e tudo o que viria depois apenas atestaria seu grito de moribunda agonia. Contra tal niilismo não basta reativar a fantasia do reencantamento, restabelecer teogonias. O caminho da sacralização só pode ser o desdobramento indefinido da catástrofe: fazer da pura forma (ou força) de lei (Agamben) um conteúdo válido. Parodiando em termos alemães, passamos facilmente do Achtung - respeito ou temor reverencial – para a Ächtung – proscrição ou banimento. São pólos, afinal, facilmente intercambiáveis.
Não pode ser uma rota viável, contra a vigência sem significado (Scholem/Agamben) atuando no interior da própria filosofia, reativar o discurso do cânon, retornar de maneira ritual às fontes sacralizadas, à filologia respeitosa, à filosofia profissional (Schulphilosophie, a profissão de fé dos Denker von Gewerb que Kant jocosamente hostilizou), ao autor e sua soberania intencional de auréola intocada.
Urge, quiçá mais do que nunca, suscitar mais uma vez a questão - o nó problemático - da teoria como sendo a dimensão intransigente (pois não pode transigir ou compactuar com o já dado, sem o filtro da crítica), irredutível e indômita de formação de conceitos (Deleuze) e criação de novos planos cartográficos e linhas de fuga para pensar o mundo e compreender o presente.
Ao invés da filosofia se apresentar, portanto, como mera "teoria da ciência", coadjuvante diante de técnicas produtoras de conhecimentos codificados em uma vã e suicida tentativa de ultrapassar os contornos da imanência, postulando a terra como um grande deserto medido por escalas astrofísicas, ou a filosofia como mera metalingüística de sutura diante de linguagens cada vez mais parciais e rompidas, é preciso ressaltar o estatuto da filosofia como campo puramente humano, imanente e irredutível de instauração de verdades que não podem ser facilmente subsumíveis aos campos das tecnociências ou das instituições oficiais, mas podem até mesmo confrontá-las, esquadrinhá-las, ir para além da opacidade que conduz ao silêncio e ao acordo tranqüilizador.
Imagem. Kandinsky. Red-Yellow-Blue. 1925.
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