Há um tempo que não colocava música para dormir. Pelo que me lembro, tinha sido um hábito antigo que reapareceu um tempo atrás e que voltou a desaparecer sem deixar vestígios. Procurando pelos sonhos que também haviam desaparecido, decidi que naquela noite iria colocar meus novos discos de Andrés Segovia. O violão que soava músicas que há anos não ouvia, o barulhinho agudo do cd a girar no velho aparelho e o painel vermelho indicando o número da faixa eram um novo companheiro na noite. O estômago doía - talvez por não ter jantado -, a cabeça entrava em divagações cretinas, os cobertores eram como pesos que, por pressão, tentavam esquentar. Nada naquela noite era digno de sonho.
Pensava nos encontros e desencontros e, talvez, com tais pensamentos tentasse recobrar minhas dimensões oníricas: nada. Era como se a noite tivesse me roubado os lugares em que tinha ido, como se minhas imagens não fossem capazes de se reagruparem nos meus desejos. Em suma, a noite tinha um gosto de um sono eterno, um gosto de morte. Levantei e troquei de disco. Agora Segovia tocava uma mélodie que Grieg tinha composto para piano que muito me agradava (aliás, muito daquelas músicas - e o box que ganhara com os 6 discos das gravações americanas de Segovia nas décadas de 40 e 50 era maravilho - eram transcrições para violão que Segovia havia feito de composições para outros instrumentos). Não tinha como me furtar a certos pensamentos (estes que também não me deixavam naquele instante sonhar): como nunca comentei com meus mais próximos que Segovia tinha sido um dos meus ídolos de adolescente (nem com quem dividi intimamente a vida). Não sabia; talvez por vergonha, talvez por traumas do período difícil da adolescência. Não sei... Levantei da cama novamente, mesmo com o frio, e procurei, nos outros discos, algumas músicas que eu tinha aprendido nas minhas aulas de violão clássico. Encontrei o Bourrée em E menor de Bach que tanto me fascinava (e que, mal e porcamente, ainda hoje consigo dedilhar uns trechos). Coloquei-o e era como se a noite tivesse aberto a porta para minha entrada nas trilhas das imagens que há pouco pensara ter perdido.
Tentei embarcar no sono, tentei correr atrás daquele som intrigante, tentei abraçar uma amada perdida não sei onde, tentei dizer os não ditos todos dos dias de verão, tentei aplacar o frio me redobrando sob as cobertas, tentei, tentei... A voz daquelas cordas era um misto: angústia e alegria, dor e regozijo, frustração e satisfação. Como dizer essa verdade de mim que parecia ter encontrado numa noite sem sonhos? Como? Virei-me para o lado ao qual dirigia minha voz noturna (principalmente quando havia música) e só pude me lembrar do sorriso sorrateiro de Ninetto Davoli, o Othelo pasoliniano - aqui, em Che cosa sono le nuvole, literalmente -, ao sentir em si a verdade. Porém, era na advertência de Totò a Ninetto em que pensava agora: isso, o que fazia Ninetto sorrir, era a verdade, mas era preciso não nomeá-la, pois tão logo nomeada deixa de existir. Tentei também eu sorrir, como Ninetto, mas não consegui... cai no sono e sonhei: ao menos aquela noite estava salva. E, sem mais, dei por conta que talvez minha verdade só pudesse ser sonhada...
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