quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Viver em Timisoara



        Para Giorgio Agamben, Timisoara representa a Auschwitz da era do espetáculo. Em 1989, esta cidade na região ocidental da Romênia foi o palco de manifestações populares contra o regime comunista de Nicolae Ceauşescu. As principais redes mundiais de notícias chegaram a afirmar a cifra de 60 a 70.000 mortos na insurreição, com corpos sendo despejados por caminhões de lixo em valas comuns.[1] Os veículos midiáticos - que naqueles dias se acotovelaram na cidade para cobrir os incidentes - mostraram, contudo, um massacre que nunca ocorreu. O que efetivamente se observou em 17 de dezembro de 1989 foi uma grandiloquente e macabra encenação. Ali foram retirados cadáveres de necrotérios e outros tantos exumados –todos de indigentes - posteriormente “submetidos” à tortura com o intuito de simular um genocídio perante as câmeras. O que milhares de telespectadores viam como uma verdade fática e incontestável, dirá Agamben, era a “não-verdade absoluta”, autenticada como informação verídica pela mídia mundial.[2]
Mas poderíamos elencar outros exemplos, recorrentes na imprensa cotidiana, desta paradoxal contre-vérité, ou mais ainda, da “não-verdade” espetacular.   
            No ano de 2008, um político brasileiro, ex-deputado estadual no Amazonas, de forma reflexa reproduziu a dialética da farsa exposta em Timisoara. Wallace Souza era parlamentar e âncora de um programa policial em Manaus. Após investigações feitas, descobriu-se que, ao mesmo tempo em que mantinha vínculos diretos com o crime organizado amazonense, Wallace encomendava o assassinato de traficantes e usários de drogas para apresentar tais crimes em seu programa. Ao contrário de Timisora, as vítimas e atrocidades cometidas eram reais. Sua prática, ao contrário, visava tão-somente atender a uma bestial e aterradora trama televisiva.[3] Uma verdade concreta e sórdida vinculada a um estratagema de “não-verdade absoluta”.  
            Em 2009, o diretor hollyoodiano de cinema Quentin Tarantino lança um polêmico blockbuster intitulado “Inglourious Basterds”. Ali, na cena capital do filme – uma mistura kitsch de apropriação sofisticada de técnicas da história cinematográfica para um enredo de estetização da violência crua (em um sentido manifestamente proto-fascista) – Tarantino faz uma paródia da aterradora tragédia de Oradour. A 10 de junho de 1944, a comuna francesa de Oradour-Sur-Glane foi tomada por uma facção da SS. Após delações de que ali haveria um foco da Resistência, todos os habitantes da cidade foram convocados à praça principal. Os homens de Oradour foram enviados para os celeiros e sumariamente mortos. Mulheres e crianças foram trancafiadas na igreja, ato seguido do mais cruel sadismo: soldados da SS incendiaram a capela, todos que tentassem fugir eram fuzilados. Os habitantes de Oradour foram praticamente dizimados e da cidade, completamente incendiada pelo esquadrão, só restaram ruínas.
            Na filmagem de Tarantino, a Capela de Oradour torna-se um pequeno cinema francês. Nela, ao invés dos mais vulneráveis habitantes da comuna, estão os principais dirigentes nazistas (Hitler e Goebbels inclusos). O gesto é idêntico, porém em polo oposto: o cinema é queimado e todos os nazistas que tentam escapar da morte nas chamas são metralhados. Neste momento da cena é possível constatar nos “bastardos caçadores de nazistas”, em posse das metralhadoras, uma expressão que denota prazer na realização do ato.
            Em “Bastardos Inglórios”, a verdade intolerável da Shoah é apresentada como uma mera contrafação cênica: do massacre de Oradour resta apenas um cenário teatral ajustado para causar o efeito de choque do anacronismo.
            Em 2010, um curto vídeo lançado no sítio virtual YouTube não deixou de causar, em meio à proliferação incontável e descartável das mais diversas produções midiáticas que são diariamente despejadas ali, uma grande polêmica. Em um filme de quatro minutos e meio, quatro jovens e um idoso dançam, numa coreografia simples e próxima da brincadeira, I Will Survive, de Gloria Gaynor, música de discoteca muito popular nos anos 80. O vídeo certamente passaria despercebido não fossem suas locações: Auschwitz, Dachau, o gueto de Lodz.
            Adolek Kohn, de 89 anos, o senhor que realiza a performance ao lado de filhos e netos, na qual veste uma camiseta branca com a insígnia “survivor”, foi um sobrevivente de Auschwitz. A ideia de criar e postar o vídeo na internet foi de sua filha, a artista plástica Jane Korman.[4] O vídeo – intitulado I Will Survive, Dancing in Auschwitz – é uma demonstração clara de como a verdade factual e o significado intrínseco desta podem ser vistos como meros acessórios (de estrita execution, performance) quando filtrados por dispositivos espetaculares que, nas últimas décadas, passam a assumir a centralidade no estabelecimento de um “entre” fantasmagórico – a prótese “comum” midiática - que paulatinamente devora os outrora hegemônicos espaços clássicos da política e da própria vida privada, remodelando-os de acordo com critérios que tendem, cada vez mais, ao nivelamento, à superposição arbitrária e ao efeito de massa puro e simples - efeitos estes que podem ser aferidos por uma mera tecla com o sugestivo nome “I like” nas redes sociais.   
Em ambos os eventos e contextos – Timisoara/Manaus/Oradour/Holywood -  a verdade do espetáculo contemporâneo em sua paradoxal desvinculação ou aridez histórica  é exposta em sua intolerável crueza. Ou seja, verdade e espetacularização da verdade tornam-se indiscerníveis, e o espectáculo passa a se legitimar tão-somente como espetáculo[5], onde, como na famosa boutade de Debord, a verdade passa a ser apenas um momento do que é falso.[6]
A busca por um espaço comum e político que não pretenda ser mera repetição reativa da linguagem transtornada da espetacularização passa, inevitavelmente, pela colocação em questão da linguagem mesma como esfera de relação humana privilegiada: o estatuto intrínseco da linguagem como espaço da verdade e da história, não como mero artefato de mediação comunicacional instrumentalizada e tecnicizada. Pensamento que não se dissocia de seu gesto e de sua imagem, que torna infrutífera e paródica a captura e a clivagem metafísica, operada pelo espectáculo tecnicizado contemporâneo, das estritas dimensões imagéticas da linguagem e sua estância – histórica - de verdade.


[1] Para uma análise detalhada do caso Timisoara, Cf. Ramonet, Ignácio. Televisão necrófila. In: A tirania da comunicação. (Trad. Lúcia Orth). Petrópolis: Vozes, 2010. pp. 98-100.     
[2] AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica. Turim: Bollatti Boringuieri, 1996. p. 66.
[3] Uma prática que se tornou corrente na chamada linha de filmes “Snuff”.
[4] Harazim, Dorrit. Bailar em Auschwitz. Revista Piauí, nº 47, agosto de 2010.      
[5] AGAMBEN, Giorgio. Mezza senza fine... p. 67.
[6] DEBORD. Guy. A sociedade do espetáculo. (Tese 9). A sociedade do espetáculo. (trad. Estela dos Santos Abreu). Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 16. 

Imagem: Bettmann/Corbis - Bozo, 1984. 

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