Para Giorgio Agamben, Timisoara representa a Auschwitz da era do espetáculo. Em 1989, esta cidade na região ocidental da Romênia foi o palco de manifestações populares contra o regime comunista de Nicolae Ceauşescu. As principais redes mundiais de notícias chegaram a afirmar a cifra de 60 a 70.000 mortos na insurreição, com corpos sendo despejados por caminhões de lixo em valas comuns.[1] Os veículos midiáticos - que naqueles dias se acotovelaram na cidade para cobrir os incidentes - mostraram, contudo, um massacre que nunca ocorreu. O que efetivamente se observou em 17 de dezembro de 1989 foi uma grandiloquente e macabra encenação. Ali foram retirados cadáveres de necrotérios e outros tantos exumados –todos de indigentes - posteriormente “submetidos” à tortura com o intuito de simular um genocídio perante as câmeras. O que milhares de telespectadores viam como uma verdade fática e incontestável, dirá Agamben, era a “não-verdade absoluta”, autenticada como informação verídica pela mídia mundial.[2]
Mas poderíamos elencar outros exemplos, recorrentes na imprensa cotidiana, desta paradoxal contre-vérité, ou mais ainda, da “não-verdade” espetacular.
No ano de 2008, um político brasileiro, ex-deputado
estadual no Amazonas, de forma reflexa reproduziu a dialética da farsa exposta
em Timisoara. Wallace Souza era parlamentar e âncora de um programa policial em
Manaus. Após investigações feitas, descobriu-se que, ao mesmo tempo em que
mantinha vínculos diretos com o crime organizado amazonense, Wallace
encomendava o assassinato de traficantes e usários de drogas para apresentar
tais crimes em seu programa. Ao contrário de Timisora, as vítimas e atrocidades
cometidas eram reais. Sua prática, ao contrário, visava tão-somente atender a
uma bestial e aterradora trama televisiva.[3]
Uma verdade concreta e sórdida vinculada a um estratagema de “não-verdade
absoluta”.
Em 2009, o diretor hollyoodiano de cinema Quentin
Tarantino lança um polêmico blockbuster intitulado “Inglourious Basterds”. Ali, na
cena capital do filme – uma mistura kitsch de apropriação sofisticada de
técnicas da história cinematográfica para um enredo de estetização da violência
crua (em um sentido manifestamente proto-fascista) – Tarantino faz uma paródia
da aterradora tragédia de Oradour. A
10 de junho de 1944, a comuna francesa de Oradour-Sur-Glane
foi tomada por uma facção da SS. Após delações de que ali haveria um foco da
Resistência, todos os habitantes da cidade foram convocados à praça principal.
Os homens de Oradour foram enviados
para os celeiros e sumariamente mortos. Mulheres e crianças foram trancafiadas
na igreja, ato seguido do mais cruel sadismo: soldados da SS incendiaram a
capela, todos que tentassem fugir eram fuzilados. Os habitantes de Oradour foram praticamente dizimados e
da cidade, completamente incendiada pelo esquadrão, só restaram ruínas.
Na filmagem de Tarantino, a Capela
de Oradour torna-se um pequeno cinema
francês. Nela, ao invés dos mais vulneráveis habitantes da comuna, estão os
principais dirigentes nazistas (Hitler e Goebbels inclusos). O gesto é
idêntico, porém em polo oposto: o cinema é queimado e todos os nazistas que
tentam escapar da morte nas chamas são metralhados. Neste momento da cena é
possível constatar nos “bastardos caçadores de nazistas”, em posse das
metralhadoras, uma expressão que denota prazer na realização do ato.
Em “Bastardos Inglórios”, a verdade
intolerável da Shoah é apresentada
como uma mera contrafação cênica: do massacre de Oradour resta apenas um cenário teatral ajustado para causar o
efeito de choque do anacronismo.
Em 2010, um curto vídeo lançado no
sítio virtual YouTube não deixou de
causar, em meio à proliferação incontável e descartável das mais diversas
produções midiáticas que são diariamente despejadas ali, uma grande polêmica.
Em um filme de quatro minutos e meio, quatro jovens e um idoso dançam, numa
coreografia simples e próxima da brincadeira, I Will Survive, de Gloria Gaynor, música de discoteca muito popular
nos anos 80. O vídeo certamente passaria despercebido não fossem suas locações:
Auschwitz, Dachau, o gueto de Lodz.
Adolek Kohn, de 89 anos, o senhor
que realiza a performance ao lado de filhos e netos, na qual veste uma camiseta
branca com a insígnia “survivor”, foi
um sobrevivente de Auschwitz. A ideia de criar e postar o vídeo na internet foi
de sua filha, a artista plástica Jane Korman.[4] O vídeo – intitulado I Will Survive,
Dancing in Auschwitz – é uma demonstração clara de como a verdade factual e
o significado intrínseco desta podem ser vistos como meros acessórios (de
estrita execution, performance)
quando filtrados por dispositivos espetaculares que, nas últimas décadas,
passam a assumir a centralidade no estabelecimento de um “entre” fantasmagórico
– a prótese “comum” midiática - que paulatinamente devora os outrora
hegemônicos espaços clássicos da política e da própria vida privada,
remodelando-os de acordo com critérios que tendem, cada vez mais, ao
nivelamento, à superposição arbitrária e ao efeito de massa puro e simples - efeitos
estes que podem ser aferidos por uma mera tecla com o sugestivo nome “I like” nas redes sociais.
Em ambos os eventos e contextos
– Timisoara/Manaus/Oradour/Holywood - a
verdade do espetáculo contemporâneo em sua paradoxal desvinculação ou aridez
histórica é exposta em sua intolerável
crueza. Ou seja, verdade e espetacularização da verdade tornam-se
indiscerníveis, e o espectáculo passa a se legitimar tão-somente como
espetáculo[5],
onde, como na famosa boutade de
Debord, a verdade passa a ser apenas um momento do que é falso.[6]
A busca por um espaço comum e
político que não pretenda ser mera repetição reativa da linguagem transtornada
da espetacularização passa, inevitavelmente, pela colocação em questão da linguagem
mesma como esfera de relação humana privilegiada: o estatuto intrínseco da
linguagem como espaço da verdade e da história, não como mero artefato de
mediação comunicacional instrumentalizada e tecnicizada. Pensamento que não se
dissocia de seu gesto e de sua imagem, que torna infrutífera e paródica a
captura e a clivagem metafísica, operada pelo espectáculo tecnicizado contemporâneo,
das estritas dimensões imagéticas da linguagem e sua estância – histórica - de
verdade.
[1] Para uma análise detalhada do
caso Timisoara, Cf. Ramonet,
Ignácio. Televisão necrófila. In: A
tirania da comunicação. (Trad. Lúcia Orth). Petrópolis: Vozes, 2010. pp.
98-100.
[2] AGAMBEN, Giorgio. Mezzi senza fine. Note sulla politica.
Turim: Bollatti Boringuieri, 1996. p. 66.
[3] Uma prática que se tornou
corrente na chamada linha de filmes “Snuff”.
[5]
AGAMBEN, Giorgio. Mezza senza fine...
p. 67.
[6] DEBORD. Guy. A sociedade do
espetáculo. (Tese 9). A sociedade do espetáculo. (trad. Estela
dos Santos Abreu). Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 16.
Imagem: Bettmann/Corbis - Bozo, 1984.
Imagem: Bettmann/Corbis - Bozo, 1984.
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