Os estreitos caminhos do cemitério. E, novamente, o cemitério. Hoje me dou conta do quanto escrever é travar um combate com a morte, mesmo que nas imagens irônicas e imprecisas das caminhadas reflexivas, imediatamente reflexivas. Tomo meu tempo, tomo o tempo em que a morte suspende-se no espaço da vida. Pensava, por uma questão de métier, nas roupas dos mortos. Eles, os únicos homens verdadeiramente nus - já não há partilha do sensível dentro das tumbas -, sempre vão à morte por nós, supostamente vivos, preparados e bem vestidos, como se ainda estivessem na comutação do espaço do sensível. Escolhemos as paramentas mortuárias dos nossos sempre pensando em como nos marcaram, de algum modo, ainda em vida. É a imagem das impropriedades (e o que são as roupas senão a impraticável naturalidade do vivente que possui a linguagem?), que em nós deixaram as propriedades do morto que então preparamos, a guiar nossas lembranças, nossas memórias. Ao vestirmos nossos mortos para o sepultamento, procuramos encontrar o modo de, no efêmero momento de escolha dos panos que serão os acompanhantes eternos daquele que se vai, construir a figura, a imagem, da vida naquilo que é fora o receptáculo da vida mas que agora jaz à espera do encontro com o deserto de pó. Tentamos, a todo custo, construir uma imagem do eterno, um corpo para além das imagens, mas somos surpreendidos a cada instante pela traição do esquecimento. Montamos o filme da vida do ente que se vai (e que Pasolini me ouça), damos sentido à sua existência enquanto memória nos mortais (e que os velhos gregos me ouçam), mas somos ludibriados pela nossa mais própria possibilidade: somos animais mediais, somos a animalidade em estado puro, somos os bichos que contam histórias. No instante em que tentamos apreender um suposto nexo de sentidos para aquela existência que ali jaz e sai do nosso convívio (vestindo-a como pensamos ser seu modo mais próprio), enxergamos o vazio incolmatável que aquele corpo habitava muito antes da morte e que, como um espelho, mostra-nos que também nós, ainda vivos, somos desertos de pó, grãos de areia perdidos que em si já carregam toda morte possível.
Imagem: Giovanni Bellini. Quatro Alegorias: Falsidade (ou sabedoria). 1490. Galleria dell'Accademia, Venezia.
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