terça-feira, 25 de setembro de 2012

Aseitas


"Aseitas", expressão escolástica que designa um ser que contém em si a razão de sua existência.

"Se deus não existe, tudo é permitido", objeta o niilista Ivan Karamazov. O chiste é de Lacan, respondendo: "Se deus existe, tudo é permitido". Todos os gestos humanos, com deus, perdem sua irredutível imanência, por assim dizer, deixam de ter significados intrínsecos. Matarei e estarei sujeito ao purgatório, ao juízo de deus, ao inferno... Se há uma expiação, mesmo assustadora, estamos salvos do absurdo, todos os gestos humanos poderão ser julgados a partir de uma escala infinitamente superior a eles mesmos, por mais que este tribunal seja imperscrutável, como o deus de Pascal. Mas é justamente por não existir deus, ou por ele ser absolutamente impotente diante da imanência humana (o grito desesperado do sacrificiado no lenho: "Eloi Eloi lama sabachthani?"), uma ética é possível. A ética é a dor da liberdade e, enquanto tal, nunca pode ser absoluta. Só há ética profana, gestos mortais e únicos, no ser-sem-Deus - imanência pura - do mundo.  

De um lado, o niilista militante (ou ressentido): se deus não existe, não há qualquer fundamento para os atos humanos, é o absurdo. Para Nietzsche, a face reativa do niilismo. Ainda aqui o absoluto divino, de forma negativa, é responsável por fundar um anômico plano terreno, o outro da dicotomia, o outro da Lei. A anomia, o pecado e a transgressão são resíduos da ideia de Lei.   

O difícil é pensar este mundo sem nada além, sem fundo (mas não infundado!), a pura semblância. Sem o juízo de deus e sem o abandono deste, sem Lei. O mundo de sonho, loucura, razões parciais, arte, delírio, fezes, sangue, o único que temos. Poderíamos viver, me agradaria viver, num mundo em que todos reconhecessem ser sem-deus, sabendo-se não autárquicos, e por isso comprometidos com a memória e com seus gestos únicos, com aquilo que deixarão, seus rastros, na pedra terrestre. Sentindo na carne a dor das singularidades perecíveis, do irrepetível, do irreparável. Aceitaria até mesmo um politeísmo mágico como nos tempos homéricos. 

Vivemos, porém, no tempo do mais estéril e desértico monoteísmo, o "Tu deves!" é a lei férrea de uma religião que já substituiu até mesmo a ideia cristã de deus. Impiedoso e mortal Mefistófoles, o deus da carnificina, da infernal repetição, do gozo e da irrestrita Lei mesmo às vésperas do fim do mundo: der Geist des Kapitalismus. 


Imagem: Bruegel, Cristo carregando a Cruz,1564; Kunsthistoriches Museum, Vienna

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