Como Orfeu, toco
a morte nas cordas da vida
E à beleza do mundo
e dos teus olhos que regem o céu
só sei dizer trevas.
Não te esqueças que também tu, subitamente,
naquela manhã, quando o teu leito
estava ainda húmido de orvalho e o cravo
dormia no teu coração,
viste o rio negro passar por ti.
Com a corda do silêncio
tensa sobre a onda de sangue,
dedilhei o teu coração vibrante.
A tua madeixa transformou-se
na cabeleira de sombras da noite,
os flocos negros da escuridão
nevavam sobre o teu rosto.
E eu não te pertenço.
Ambos nos lamentamos agora.
Mas, como Orfeu, sei
a vida ao lado da morte,
e revejo-me no azul
dos teus olhos fechados para sempre.
Ingeborg Bachmann. Dizer Trevas. In.: O Tempo Aprazado. Lisboa: Assírio & Alvim. 1992. Trad.: Judite Berkemeier e João Barrento. pp. 27-29.
Imagem: Ilda David. Voo do anjo.
2 comentários:
isso não é um poema, é um grito, um espasmo, um tremor ontológico!
A figura da Ilda David é lindíssima! Encontra-se em algum livro, em particular?
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