sexta-feira, 8 de abril de 2011

Verborragia do meio-dia


Sinto que não gosto de doses homeopáticas. Bem parece que intensidade pode ser dosada... As cápsulas de tempo que nos empurram goela abaixo não apagam meu desejo de furor, de dança com a solidão dos tempos, de tripudiar a carniça que meus olhos enxergam. Envergando meu tronco para cima, sentindo o ar nos pulmões como bolas de ferro microscópicas a tirar deles os espaços vazios, acabo o dia ao meio-dia. Entrego meus pedaços mais sujos, meus desejos mais depravados, minhas absurdas ideias sobre o que fazer nos momentos vagos à impaciência que me domina. Tomo mesmo desse veneno. Aceito pensamentos abstratos, já que nem todo pensamento o é; engulo a fome a caráter, mato minha sede com a mais putrefata água, vou até remansos insólitos que pairam à beira da minha consciência - eles estão ali parados e aureolados numa fraude imaginativa. Agora inclino-me, olho para o chão, e a visão não me é menos desagradável: corpos humanos destroçados, furúnculos a comer a pele dos meus pés, jóias antigas que adornaram pescoços doces agora eram detritos que atrapalhavam o caminho. Ó doce ilusão do meio-dia! Corro para a cama, deito-me como um doente, esfrego minhas mãos para ver à contra-luz a poeira delas sair. A sujeira, a sujeita, a espreita... ignóbeis ataduras que me cercam; a proximidade da morte, a distância da morte; a fala aguçada de quem vive perto; a letra morta dos livros de hagiografia; a santa que jazia aos meus pés a unta-los com mirra; é o deus imundo repetindo, como o fez a Artaud, que fará cada vez mais e mais sobre mim este homem que nem sei que sou; "de quoi remplirai-je le néant?"; ainda uma vez, ainda uma vez e mais uma vez; nada de tratamento homeopático, nada de conta-gotas, nada de nada... a voracidade do choque, o estado de choque, o dia que termina ao meio-dia. Gasto meus pés no cimento quente e áspero e vejo-os sangrar o sangue do cristo. Não o consagro, não o coloco em cálices nem dou a sacerdotes inconsequentes esse gosto agridoce-amargo. Todos os sabores, todas as sensações terminam no dia da consagração. A consagração é homeopática, a cruz é furor! Sujeira que vem à boca do cristo na esponja embebida em vinagre; campos de lírios onde antes gaseificavam pessoas; imagens de assombro, corpos que bóiam num rio cheio de petróleo; as tentativas de totalizar a existência; imagens que saltitam plenas de palavras de outros; mas a desgostosa manhã insiste em terminar nas sombras de um nada que não sei com o quê preencher... São as palavras, sim as palavras, estas malbemditas coisas vazias que nos dão as sensações. São elas... e a elas estamos condenados! Entro em contato direto com elas: "fiat lux!" E do imperativo uma coisa se fez, e essa coisa era a palavra. Era no princípio e é no fim. Chega de unguentos, quero soltar as ataduras, quero libertar o sagrado - o vazio - das coisas, dessas coisas que são as palavras. Impaciente não silencio o silêncio destas coisas: palavras; saem e correm por aí, saem e me deixam aqui, nesta cama, vendo a poeira sair de minhas mãos...

imagem: Reymond Depardon. Republic of Djibouti. Moulhoué. 1988.

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