Curioso como em meio a um voo podemos nos ater a certos detalhes da cabine que podem nos deixar um tanto quanto perplexos. Observando os avisos de segurança fixados nas poltronas (inúteis e eufêmicos: nos desenhos demonstrativos, os "personagens" aparecem com rostos apáticos, até, poderíamos dizer, tranquilos, quando, na verdade, um acidente seria uma situação de pânico... um insulto à inteligência), notei um em particular que me deixou atônito: "Use o assento para flutuar".
Obviamente que se trata de uma mensagem para o caso de o avião cair num rio ou no mar. Mas o óbvio nem sempre é o primeiro reflexo de quem lê tal mensagem (ao menos pra mim foi assim). Fiquei pensando: ora, já não estamos usando as poltronas para flutuar? Mas flutuar também não implica a liberdade dos objetos, isto é, criar um espaço entre o corpo que flutua e o solo? Será que há alguma relação filológica entre "flutuar" e o "flatus" (vento) latino? Lembrei-me vagamente das discussões sobre a "flatus vocis" na teologia e filosofia medievais, das disputas sobre os universais e as essências... enfim, foram várias as minhas viagens nesta viagem; várias minhas flutuações nesta flutuação, várias as ambiguidades no meio destas grandes ambiguidades que são as palavras.
Curioso (e aqui outra palavra que nos leva de um desejo a outro, de um desejo de saber à dúvida, ou seria o contrário? Talvez um tostines. Aliás, a tal companhia aérea não oferecia mais que um tostines para comer) é que no instante em que pensava nessa história da flutuação lia um texto de Furio Jesi no qual o mitólogo falava de sua fundamental ideia "máquina mitológica" em termos gastronômicos. A comparação do seu conceito com a preparação de um prato de camarões (receita e modo de preparo que Jesi extrai do famoso "Guide de Culinaire" de Escoffier, publicado em 1921) me remeteu a um recente video que vi, no qual David Lynch compara a criação cinematográfica com a preparação de um prato de quinoa com brócolis.
Os paralelos, comparações e contrastes entre a produção (criação) de um prato e uma elaboração (criação) intelectual me pareceram bastante justos e precisos. Toda a questão de sobre como cortar, trabalhar, cozinhar os camarões tinha realmente a ver com as maneiras de observar, analisar e descrever "materiais mitológicos"; assim como tinham muito em comum a arte de cozinhar a quinoa com brócolis e o fazer cinema: cozinhar os grãos, marcar o tempo, cortar o brócolis, misturar os ingredientes e montar o prato.
Acho que realmente estava usando a poltrona para flutuar, mas agora até mesmo a ambiguidade se tornava ambígua. Ao final do texto, Jesi lembra que ambíguo se diz "ambigu" em francês. Porém, "Ambigu" também designa uma refeição fria em que se servem ao mesmo tempo os pratos salgados com a sobremesa. Ora, o doce com o salgado, os tempos do comer se misturando, as diversas composições possíveis, tudo isso - além de me suscitar a ideia da criação conceitual, ensaística ou cinematográfica - lembrou-me muito uma situação de fim de festa, quando os convivas, após se deleitarem com Baco, perdem a cronologia (e uns mais pudicos dizem: perdem a compostura) e se entregam à ambiguidade dos sabores.
Agora, aqui neste saguão de aeroporto (um não-lugar) só posso perceber que o padre que passa à minha frente, a mãe com seu bebê que chora, estes homens de negócio engravatados e falando sem cessar nos seus aparatos tecnológicos de última geração ("da" última geração...) como que a resolver todos os problemas do mundo, estes anúncios publicitários infindáveis, estes monitores que não param de "informar", são imagens absurdas que parecem não ter nem doce, nem salgado, mas um gosto insosso e que, para mim, mostram-se assustadoras, como fantasmas vagando não em meio a uma festa, muito menos saboreando o doce-salgado do fim de uma festa, mas num culto seríssimo de um templo que capturou toda a ambiguidade das palavras. Tudo parece muito óbvio, tudo está no seu lugar (para tudo se diz: amém!), tudo tem uma função, aliás, é sempre preciso lembrar: "use o assento para flutuar".
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