sexta-feira, 15 de abril de 2011

Dizer Trevas



Talvez, à extemporânea, este poema de Ingeborg Bachmann possa ser uma glosa...

Como Orfeu, toco
a morte nas cordas da vida
E à beleza do mundo
e dos teus olhos que regem o céu
só sei dizer trevas.

Não te esqueças que também tu, subitamente,
naquela manhã, quando o teu leito
estava ainda húmido de orvalho e o cravo
dormia no teu coração,
viste o rio negro passar por ti.

Com a corda do silêncio
tensa sobre a onda de sangue,
dedilhei o teu coração vibrante.
A tua madeixa transformou-se
na cabeleira de sombras da noite,
os flocos negros da escuridão
nevavam sobre o teu rosto.

E eu não te pertenço.
Ambos nos lamentamos agora.

Mas, como Orfeu, sei
a vida ao lado da morte,
e revejo-me no azul
dos teus olhos fechados para sempre.


Ingeborg Bachmann. Dizer Trevas. In.: O Tempo Aprazado. Lisboa: Assírio & Alvim. 1992. Trad.: Judite Berkemeier e João Barrento. pp. 27-29.

Imagem: Ilda David. Voo do anjo.

2 comentários:

pancho disse...

isso não é um poema, é um grito, um espasmo, um tremor ontológico!

Ricardo Gil Soeiro disse...

A figura da Ilda David é lindíssima! Encontra-se em algum livro, em particular?