Para alguns, Pier Paolo
Pasolini é sinônimo de provocação, de escândalo permanente; mas
é também um exemplo de vívido empenho da inteligência e dos sentimentos. É
difícil ignorar aquilo que diz Pasolini. E se, então, ele diz que o
romance não lhe agrada mais e que prefere o cinema (Teorema, por
exemplo) ou o teatro, certamente sua afirmação é bem motivada.
Personagem dos
mais discutidos do milieu cultural italiano, Pasolini torna-se notícia toda vez
que escreve poesias, romances, textos para o teatro, ou faz filmes. Suas
opiniões, expressas sem ternura por nenhuma posição pré-constituída, acendem
discussões que deixam um rastro, um traço. Em suma, parece que é preciso
forçosamente encontrá-lo no cruzamento para o qual outros vão, mas ao qual ele
chegou primeiro. Portanto, conhecer as opiniões desse personagem sobre uma
realidade universal, que é Veneza, torna-se quase obrigatório.
A primeira
pergunta que lhe fizemos sobre Veneza foi esta: "O que para o senhor representa esta
cidade-ilha no plano da cultura e também dos sentimentos? Isto é,
o que é Veneza?"
Pasolini, entre um voo e outro, num
hotel de Mestre no dia seguinte à entrega do Prêmio
All'Amelia, que a ele foi conferido por sua atividade cinematográfica,
respondeu:
"O que representa para mim uma mureta divisória de hortos ou campos construídos antes
da unidade da Itália, ou pouco depois, uma humilde mureta de pedras ou tijolos,
com sua pequena porta ornamentada e seu arco, talvez, sob a sombra de carvalhos
ou entre amoreiras? Digo, nada mais do que uma mureta? Representa, com o
início de minha vida, o modelo de todos os meus valores. Se vejo uma delas
destruída ou mesmo demolida, ou simplesmente abandonada e em ruínas, fico com o
coração apertado de dor e de raiva: nada no mundo me enfurece mais do que algo do
gênero. É uma ofensa que não posso perdoar. Veneza", explica o escritor,
"é uma dessas muretas que, nas periferias das cidades ou, ainda, também nas pequenas cidades, são motivo de dor e de medo, objeto de uma ânsia contínua
e impotente. O que será delas? E de toda nossa história?"
Uma pausa.
"Quanto amor tenho por um velho tijolo, por uma velha pedra! E, quanto a
Veneza, não ouso nem mesmo falar. Abandono esses sentimentos aos sonhos que, de
fato, são terríveis. Na realidade, não tenho a coragem para me colocar o
problema. Penso no abandono de certas casas no Lazio ou na Sicília... Bem,
apenas para defender da destruição uma dessas casas digo que deveria ter a
força, mística, de mudar a minha vida de rumo: dedicar-me a tal causa, como
Gandhi à independência da Índia, ou Dolci ao renascimento de Partinico. São necessários protestos, privações, e, talvez, coquetéis molotov para defender a 'beleza antiga' de que Veneza é o símbolo."
O que o senhor
pensa da literatura sobre Veneza?
Não gosto muito
desse tipo de literatura - que, na minha ignorância, não ignoro - porque é
completamente estetizante. Tudo aquilo que disse, com efeito, na resposta
anterior, não deriva de um amor estético pela beleza.
O senhor pensa
que Veneza, pelo que foi e pelo que conserva de si, possa constituir aquilo que é dito um valor cultural ou mesmo sentimental para quem a viu e para
quem estudou sua história ou dela ouviu falar? Pessoalmente, como a considera?
Veneza é um valor,
para mim. Um valor religioso laico enquanto cristalização do historicismo e
racionalização dos mistérios infantis. Veja, Veneza é a história que me impede
de ser um profeta objetivo, que, portanto, cega-me diante do futuro. Não me
importa nada em relação aos filhos e aos descendentes. Que se arranjem. Eu tive a sorte de
nascer numa civilização para a qual Veneza ainda não parecia arqueológica. Por isso
também serei, em tese, capaz de matar (é a primeira vez em minha vida que
digo isso, desde os tempos de Hitler) apenas para defendê-la de quem - por especulação ou
desamor - a ameace. Desculpo-me se uso palavras pesadas, mas numa resposta
curta e rápida não há outro modo de abrir caminho à verdade.
Qual e quando foi
o seu primeiro encontro com Veneza?
Durante um passeio
escolar, vestido de balilla[1],
em 1929.
[1] Balilla
era a designação dada às crianças de 8 a 14 anos inscritas nas escolas de formação
durante o período fascista (N.T.)
Pier Paolo Pasolini. Cristalizzazione dei misteri infantili. in.: Saggi sulla Politica e sulla Società. A cura di Walter Siti e Silvia De Laude. Milano: Arnoldo Mondadori, 2012. pp. 1623-1625. [A entrevista foi originalmente publicada em "Il Gazzettino di Venezia", de 24 de maio de 1968.] (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
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