Por certo vocês se lembram da imagem do anão corcunda, da primeira tese Sobre o conceito de história de
Benjamin, que está escondido sob o tabuleiro e que, por seus movimentos,
assegura a vitória ao fantoche mecânico vestido de turco. Benjamin toma tal
imagem de um trecho de Poe; mas transpondo-a para o terreno da filosofia da
história, acrescenta que aquele anão é, na realidade, a teologia “que hoje é
pequena e feia e que não deve em nenhum caso deixar-se ver”, e se o
materialismo histórico souber tomá-la a seu serviço, então ele ganhará a
partida histórica contra seus temíveis adversários.
Dessa maneira, Benjamin
nos convida a considerar o próprio texto das teses como um tabuleiro sobre o
qual se desenrola uma batalha teórica decisiva que, devemos supor, também nesse
caso, é conduzida com a ajuda de um teólogo escondido entre as linhas do texto.
Quem é esse teólogo corcunda, que o autor soube tão bem dissimular no texto das
teses, que ninguém até agora conseguiu identificar? E é possível encontrar nas
teses indícios e traços que permitam atribuir um nome àquele que não deve em
nenhum caso se deixar ver?
Citação
Numa das notas da seção N de seu fichário (que
contém reflexões sobre a teoria do conhecimento), Benjamin escreve: “Este trabalho
deve desenvolver ao máximo a arte da citação sem aspas” (Benjamin, 1974-89, V,
572). Como vocês sabem, a citação tem em Benjamin uma função estratégica. Assim
como existe uma sorte de compromisso secreto entre as gerações passadas e a
nossa, também entre as escrituras do passado e o presente há um compromisso do
gênero, e as citações são, por assim dizer, as intermediárias de seu encontro.
Não surpreende, portanto, que elas devam ser discretas e que por vezes saber
cumprir de modo não reconhecível o seu trabalho. Tal trabalho não é tanto de conservação quanto de demolição: “A
citação”, pode-se ler no ensaio sobre Kraus, “chama a palavra pelo seu nome,
arranca-a do contexto que destrói”; ela “salva e pune” ao mesmo tempo (ibid., II, 363). No ensaio O que é o teatro épico?, Benjamin
escreve: “citar um texto significa interromper o contexto a que ele pertence.”
O teatro épico brechtiano, ao qual Benjamin se refere no seu ensaio, propõe-se
a tornar citáveis os gestos. “O ator”, acrescenta, “deve ser capaz de espaçar
seus gestos, como o tipógrafo o faz com as letras” (ibid., 536).
O verbo alemão que se
traduz aqui por “espaçar” é sperren. Ele
designa a convenção tipográfica – não apenas alemã – de substituir os itálicos
por um espaçamento entre as letras da palavra que se quer, por alguma razão,
assinalar. O próprio Benjamin – toda vez que utiliza uma máquina de escrever –
serve-se dessa convenção. Do ponto de vista paleográfico, trata-se do contrário
das abreviações utilizadas pelos copistas para certas palavras recorrentes no
manuscrito, e que, por assim dizer, não havia necessidade de ler (ou, se
pensamos nas nomina sacra de Traube,
que não se devia): os termos espaçados são, de certa maneira, hiper-lidos,
lidos duas vezes – e, como sugere Benjamin, essa dupla leitura podia ser aquela
palimpsestica da citação.
Se vocês derem agora uma
olhada no Handexemplar das teses,
verão que já na segunda tese Benjamin recorre a tal convenção. Na quarta linha
antes do fim, lê-se: Dann ist uns, wie
jedem Geschlecht, das vor uns war, eine s c h w a c h e messianische Kraft
mitegegeben..., “Para nós, como para todas as gerações que nos precederam,
foi dada uma f r a c a força messiânica”. Por que “fraca” está espaçada? Qual
tipo de citação está aqui em questão? E por que a força messiânica, à qual
Benjamin confia a redenção do passado, é fraca?
Bem, eu conheço somente um
único texto em que se teoriza de maneira explícita a fraqueza da força messiânica.
Como vocês viram, trata-se da passagem de 2
Cor 12, 9-10, que comentamos várias vezes, em que Paulo, que pediu para o
messias de liberá-lo do espinho na carne, sente-se responder hē gar dynamis en astheneía teleítai, “a
potência se cumpre na fraqueza”. “Por isso”, acrescenta o apóstolo, “comprazo-me
nas fraquezas, nos ultrajes, nas necessidades, nas perseguições e nas angústias
pelo messias; com efeito, quando sou fraco, então sou potente [dynatós].” O fato de que se trate de uma
verdadeira citação sem aspas está confirmado pela tradução de Lutero, que
Benjamin devia provavelmente ter diante de seus olhos. Enquanto Jerônimo traduz
por virtus in infirmitate perficitur, Lutero,
como a maioria dos tradutores modernos, prefere denn mein Kraft ist in den schwachen Mechtig: os dois termos (Kraft e schwache) estão presentes, e é essa hiper-legibilidade, essa
presença secreta do texto paulino nas teses, que o espaçamento quer
discretamente assinalar.
Vocês entendem que a
descoberta dessa citação escondida – mas não muito – no interior dessa tese
muito me emocionou. Por aquilo que sabia, Taubes tinha sido o único a sugerir
uma influência possível de Paulo sobre Benjamin, mas sua hipótese se referia a
um texto do começo dos anos 1920, o Fragmento
teológico-político, que Taubes coloca em relação precisamente com Rm 8, 19-23. A intuição de Taubes é
certamente justa; entretanto, não somente não é possível falar de citação nesse
caso (salvo, talvez, para o termo benjaminiano Vergängnis, “caducidade”,
que poderia corresponder ao vergengliches
Wesen da tradução luterana do versículo 21) – mas há, entre os dois textos,
diferenças substanciais. Enquanto, de fato, em Paulo a criação foi sujeitada
sem o querer à caducidade e à destruição, e que por isso ela geme e sofre na
espera da redenção, em Benjamin, com uma genial inversão, a natureza é messiânica
exatamente por sua eterna e total caducidade, e o ritmo dessa messiânica
caducidade é a felicidade.
Imagem
Uma vez descoberta a citação paulina na segunda
tese (eu lembro a vocês que as teses Sobre
o conceito de história são uns dos
últimos escritos de Benjamin, quase uma espécie de testamento sobre sua
concepção messiânica da história), o caminho está livre para a identificação do
teólogo anão, que move secretamente as mãos do fantoche materialismo histórico.
Um dos conceitos mais enigmáticos do pensamento benjaminiano dos últimos anos é
Bild, imagem. Ele aparece várias
vezes no texto das teses, de modo particular na quinta, em que lemos: “A
verdadeira imagem (das wahre Bild) do
passado fugiu veloz. Somente na imagem, que lampeja num
clarão de uma vez por todas no instante de sua cognoscibilidade, deixa-se fixar
o passado... Uma vez que é uma imagem irrevogável do passado que arrisca
desaparecer de cada presente, que não se reconhece significado nela.” Temos
vários fragmentos nos quais Benjamin procura definir esse verdadeiro terminus technicus de sua concepção da
história, mas, talvez, nenhum é tão claro como Ms., 474: “Não é que o passado
lance sua luz sobre o presente, ou que o presente lance sua luz sobre o
passado; a imagem é, antes, aquilo em que o passado vem convergir com o
presente numa constelação. Enquanto a relação entre o então e o agora é
puramente temporal (contínua), a relação do passado com o presente é dialética,
por saltos” (Benjamin, 1974-1989, I, 1229).
Bild é, portanto, para Benjamin, tudo aquilo
(objeto, obra de arte, texto, lembrança ou documento) em que um instante do
passado e um instante do presente se unem numa constelação, no qual o presente
deve saber se reconhecer significado no passado e este encontra no presente seu
sentido e seu cumprimento. Mas nós já encontramos em Paulo uma similar
constelação entre passado e futuro naquela que definimos como “relação
tipológica”. Também aqui um momento do passado (Adão, a passagem pelo Mar
Vermelho, o maná etc.) deve ser reconhecido como typos do agora messiânico
– e, assim, como vimos, o kairós messiânico
é precisamente essa relação. Mas por que Benjamin fala de Bild, “imagem”, e não de tipo ou figura (que é o termo
da Vulgata)? Bem, dispomos de uma prova textual que nos permite falar, também
nesse caso, de uma verdadeira citação sem aspas: Lutero traduz Rm 5, 14 (typos tou méllontos) por welcher
ist ein Bild des der zukunfftig war (1
Cor 10, 6 é traduzido por Furbilde; e
antítypos, em Heb 9, 24, por Genenbilde).
De resto, também nessa tese Benjamin utiliza o espaçamento, mas o desloca para três
palavras depois de Bild, a um termo
que não parece ter nenhuma necessidade de ser sublinhado: das wahre Bild des Vergangenheit h u s c h t vorbei – que,
naturalmente, pode também conter uma alusão a 1 Cor 7, 31: parágei gar to
schēma tou kosmou toutou (“passa, de fato, a figura desse mundo”), da qual
Benjamin talvez tirou a ideia de que a imagem do passado arrisca desaparecer para
sempre se o presente não nele se reconhece.
Vocês se recordam que, nas cartas paulinas, o conceito de typos está estreitamente ligado ao de anakephalaíōsis, recapitulação, e que,
junto com este, define o tempo messiânico. Também tal conceito está presente no
texto benjaminiano numa posição particularmente significativa, isto é, no fim
da última tese (que, depois de o Handexemplar
ter sido encontrado, não é mais a
décima oitava, mas a décima nona). Leiamos, então, a passagem em questão:
Die
Jetztzeit, die als Modell der messianischen in einer ungeheuren Abbreviatur die
Geschichte der ganzen Menschheit zusammenfasst, fällt haarscharf mit d e r
Figur zusammen, die die Geschichte der Menschheit im Universum macht. (“A atualidade que, como modelo do tempo
messiânico, reassume numa abreviação desmedida a história da humanidade
inteira, coincide perfeitamente com a figura que a história da
humanidade faz no universo”).
Jetztzeit
Algumas palavras, antes de mais nada, sobre o
termo Jetztzeit. Num dos manuscritos
das teses, o único manuscrito em sentido técnico, aquele de propriedade de
Hannah Arendt, a palavra, no momento em que aparece pela primeira vez na tese
XIV, está escrita entre aspas (como Benjamin escreve à mão, é impossível sperren). Isso tinha impulsionado o
primeiro tradutor italiano das teses, Renato Solmi, a traduzir o termo por “tempo-agora”, o que é certamente arbitrário (uma vez que o termo alemão
significa apenas “atualidade”) e, todavia, apreende algo da intenção benjaminiana.
Depois de tudo o que dissemos no seminário sobre a expressão ho nyn kairós como designação técnica do
tempo messiânico em Paulo, é impossível não notar a correspondência literal
entre os dois termos (“o-de-agora-tempo”).
Tanto mais porque, em alemão, a história recente do termo mostra que ele tem com
frequência uma conotação negativa e anti-messiânica: tanto em Schopenhauer
(“Ele – nosso tempo – chama a si mesmo por um nome que se deu sozinho, tão
característico quanto eufemístico: Jetztzeit:
sim, precisamente Jetztzeit, isto é:
pensa-se apenas no agora e não se guarda para o tempo que vem e julga”
Schopenhauer, 1963, 213-214), quanto em Heidegger (“chamamos Jetzt-Zeit o tempo mundano tal como ele
aparece na utilização de um relógio que conta os “agora”... [no Jetzt-Zeit] a temporalidade extático-horizontal
é sobreposta e nivelada”: Heidegger, 1972, 421-422). Benjamin inverte essa
conotação negativa a fim de dar ao termo o mesmo caráter do paradigma do tempo
messiânico que ho nyn kairós possui
em Paulo.
Mas voltemos ao problema da recapitulação. A
última frase da tese – o tempo messiânico como uma abreviação enorme de toda
história – parece evidentemente retomar Efe
1, 10 (“todas as coisas se recapitulam no messias”). Mas também desta vez –
se olharmos a tradução luterana – nos damos conta de que a retomada é, na
realidade, uma citação sem aspas: alle
ding zusamen verfasset würde in Christo. O mesmo verbo (zusammenfassen) corresponde nos dois
casos ao anakephalaiōsasthai de
Paulo.
Como provas internas de uma correspondência
textual, e não apenas conceitual, entre as Teses
e as Epístolas, esses indícios
podem ser suficientes. Nessa perspectiva, todo o vocabulário das teses parece
de cunho genuinamente paulino. E não espantará que o termo “redenção” (Erlösung) – um conceito absolutamente
central para a concepção benjaminiana do conhecimento histórico – seja –
obviamente – aquele pelo qual Lutero traduz o apolutrōsis de Paulo, que
é do mesmo modo central nas Epístolas. Que tal conceito paulino seja de
origem helenística (a libertação dos escravos pela divindade, de acordo com a
sugestão de Deissmann), ou apenas judaica – ou, de modo mais provável, as duas
coisas juntas –, em todo caso a orientação para o passado que caracteriza o
messianismo benjaminiano tem o seu cânone em Paulo.
Mas existe igualmente um outro indício,
exterior desta vez, que deixa inferir que mesmo Scholem estivesse a par dessa
proximidade dos pensamentos de Benjamin e de Paulo. A atitude de Scholem em
relação a Paulo – um autor que conhece muito bem e que uma vez definiu como “o
exemplo mais eminente de misticismo revolucionário judaico” (Scholem, 1980, 20)
– não é por certo desprovida de ambiguidade. A descoberta de inspiração paulina
em certos aspectos das especulações messiânicas de seu amigo não podia ser para
ele reconfortante, e estava certamente entre as coisas que não lhe teria
agradado falar. No entanto, em um de seus livros há uma passagem em que – com a
mesma cautela com que, no livro sobre Sabbatai Zevi estabelece uma relação
entre Paulo e Nathan di Gaza – ele parece de fato sugerir, ainda que de modo
crítico, que Benjamin pudesse ser
identificado com Paulo. É na sua interpretação de Agesilaus
Santander, o enigmático fragmento composto por Benjamin, em Ibiza, em
agosto de 1933. A interpretação de
Scholem funda-se sobre a hipótese de que o nome Agesilaus Santander, pelo qual Benjamin parece referir a si mesmo
no texto, é, na verdade, um anagrama de der
Angelus Satanas. Se, como penso, vocês não se esqueceram da aparição desse ággelos sataná como um “espinho na
carne”, em 2 Cor 12, 7, não se
surpreenderão com o fato de que Scholem faça remissão precisamente a esta
passagem de Paulo como possível fonte de Benjamin. A alusão é rápida e nunca
mais repetida: mas, se se toma conta do fato de que tanto o fragmento de
Benjamin como o texto de Paulo são fortemente autobiográficos, a hipótese
implica que Scholem esteja sugerindo que o amigo, evocando a sua relação
secreta com o anjo, pudesse de algum modo identificar-se com Paulo.
Em todo caso, creio que não se possa haver dúvidas
de que – separadas entre si por quase dois mil anos e compostas numa situação
de crise radical, as Epístolas e as Teses – esses dois célebres
textos messiânicos da nossa tradição – formam uma constelação que, por alguma
razão sobre a qual lhes convido a refletir, conhece precisamente hoje o momento
de sua legibilidade. Das Jetzt der
Leserbarkeit, “o agora da
legibilidade” (ou da “cognoscibilidade”, Erkennbarkeit),
define um princípio hermenêutico genuinamente benjaminiano, que é o exato
contrário do princípio corrente, segundo o qual qualquer obra pode ser a todo
instante o objeto de uma interpretação infinita (infinita no duplo sentido: que
nunca se exaure, e que é possível independentemente da sua situação
histórico-temporal). O princípio benjaminiano supõe, ao contrário, que toda
obra e todo texto contenham um índice histórico que não indica apenas seu
pertencimento a uma determinada época, mas diz também que eles alcançam a
legibilidade num determinado momento histórico. Somente nesse sentido, como
está escrito numa nota em que Benjamin confiou sua extrema formulação
messiânica, e que constitui, portanto, a melhor conclusão de nosso seminário:
“Cada agora é o agora de determinada cognoscibilidade [Jedes Jetzt ist das Jetzt
einer bestimmten Erkennbarkeit].
A verdade é nele carregada de tempo até desaparecer em estilhaços. (Esse
desaparecer em estilhaços, e nada mais, é a morte da Intentio, que coincide com o nascimento do autêntico tempo
histórico, o tempo da verdade.) Não é que o passado lance sua luz sobre o
presente ou o presente sua luz sobre o passado, mas imagem é aquilo em que o
que foi se une num clarão com o agora numa constelação. Em outras palavras: imagem
é a dialética em suspensão. Porque, enquanto a relação do presente com o
passado é puramente temporal, aquela entre aquilo que foi e o agora é
dialética: não temporal mas imaginal. Somente as imagens dialéticas são
autenticamente históricas, isto é, não arcaicas. A imagem lida, isto é, a
imagem no agora da cognoscibilidade, leva ao mais alto grau a marca daquele
momento crítico e perigoso que está na base de toda leitura” (Benjamin,
1974-1989, V, 578).
Giorgio Agamben. Il Tempo che resta. Un commento alla Lettera ai Romani. Torino: Bollati Boringhieri, 2000. pp. 128-135. (Tradução: Vinícius Nicastro Honesko)
Imagem: Matthias Grünewald. Ressurreição de Cristo. 1515. Musée d'Unterlinden, Colmar.
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